10 de fev. de 2010

"ELE" ESTÁ ENTRE NÓS


A gente sabia que era só questão de tempo. Agora não é mais: a dengue chegou de fato a Porto Alegre.

Até este momento, trata-se de mais um "caso importado" da doença. Mas há uma diferença: pela primeira vez a Secretaria de Saúde do município constatou a presença de mosquitos infectados no entorno da residência de um habitante de Petrópolis que voltou de férias do Mato Grosso infectado pela doença.

Ouvi no rádio, de passagem, ontem pela manhã enquanto preparava o almoço e quase que a notícia me passa batida pela correria do dia-a-dia. Mas hoje, ao ver-me arrancada dos braços de Morfeu às 5 da manhã pelas trombas inclementes dos nanovampiros a breve nota divulgada entre um comentário esportivo e mais uma crítica neoliberal ao governo Lula me tomou de assalto.

Durante o dia de ontem a Prefeitura realizou bloqueio na Avenida Guaporé entre a Bagé e a João Caetano, Travessa Professor Tupi Caldas e em trechos das avenidas Bagé, Luiz Manoel Gonzaga e Rua João Caetano entre as avenidas Guaporé e Carlos Gomes.

A Prefeitura faz o que pode, e até o momento tem vencido batalha por batalha dessa guerra que ela sabe perdida de antemão. E perdida não por incompetência, sequer por desleixo da população. É uma guerra perdida porque é travada contra a elite da força aérea da biomassa mais poderosa do planeta.

Se os mosquitos em geral são os caças da força aérea dos insetos, o Aedes é o temível bombardeiro stealth: seu ataque não é precedido por aquele incômodo zumbido e, se é verdade que prefere atacar durante o dia - no início da manhã e cair da tarde -, também não se faz de rogado se porventura deparar com uma presa à noite.

Nos 30 a 35 dias que voa por aí nos assombrando, a esposa do "seu" Aedes tem de 4 a 6 gestações de cerca de 100 bacurinhos cada. Dependendo da quantidade de sangue que ela conseguiu ingerir, uma ninhada pode chegar a 150, 200 ovos.

Como qualquer senhora da elite não sai largando ovos por aí como uma reles mosquita pra quem qualquer esgoto serve. Isso seria como madame encarando fila no postão pro pré-natal pra depois dar à luz de parto normal, sem nem uma peridural num hospital do SUS. Com uma autonomia de vôo de 3 quilômetros ela pode ser dar ao luxo de escolher os melhores resorts, digo maternidades, para seus pimpolhos. O plural aqui se explica porque a "dona" Aedes é esperta como a galinha amarelinha: nunca bota todos os ovinhos no mesmo ninho, ao contrário da matrona Culex que desova toda a ninhada de uma vez só.

Como todo o cuidado é pouco com seus preciosos rebentos, a zelosa mamãe Aedes ainda se dá ao luxo e ao cuidado de envolver cada leva de ovos com um gel protetor que impede a eclosão dos ovos até que o ambiente apresente condições ideais de umidade e temperatura. E essa espera pode se estender por até 450 dias - isso mesmo, um ano e dois meses.

Nossos "espetaculares" avanços na engenharia genética são fichinha se comparados aos 400 milhões de anos de seleção natural que culminaram em armas letais como o Aedes Aegypti.

Mas, se serve de consolo, a seleção natural também joga a nosso favor - não fosse por ela o Brasil não teria chegado aos 200 milhões de habitantes nem a ferro e fogo e o homem teria desaparecido da África já há milhões de anos.

43 anos após o Grito do Ipiranga, registrou-se o primeiro caso da doença em Recife - isso de forma alguma quer dizer que a doença tenha aparecido aqui do nada naquele ano, mas tão somente que sendo ela própria uma sanguessuga, a coroa portuguesa tinha interesses mais relevantes que a saúde pública em mais uma de suas várias colônias. Até porque dizem as más línguas que junto com outras mazelas como a gripe, o sarampo, a lepra, a sífilis e etc e tal, a dengue teria chegado por mãos portuguesas a terras tupiniquins. Não diretamente pelos colonizadores, mas pelos infames porões dos navios negreiros que aportaram aos milhares por toda a costa do Brasil, já que o Aedes Aegypti, como o nome sugere, é um inseto originário da África.

Voltando à seleção natural, cerca de 80% das pessoas picadas pelo mosquito infectado no Brasil são assintomáticas ou manifestam sintomas leves da doença.

Isso leva a crer que centenas de anos de exposição aliada à miscigenação já dotaram 80% da população brasileira de um mecanismo de defesa eficiente no combate à doença. Na África, de onde se originou, a dengue causa pouca ou nenhuma preocupação. Se por um lado a turbulência e corrupção históricas do continente têm retardado a implementação de políticas adequadas de saúde pública e saneamento, a população africana em seu total abandono tem demonstrado um aparato genético de exepcional resistência e capacidade regenerativa.

Em 2008 o Centro Nacional de Investigação Superior da França anunciou a descoberta de um macrófago (grande glóbulo branco) presente na derme humana capaz de capturar o flavivírus (que é o vírus da dengue). O macrófago foi batizado de CD209/DC-SIGN.

É interessante notar que o gene CD209 foi rastreado em 2005, tendo suas origens determinadas na África há cerca de 2 milhões de anos atrás. Enquanto o CD209 (predominantemente em populações africanas e asiáticas) está relacionado à resistência a agentes como Mycobacterium tuberculosis, Helicobacter pylori, Klebsiela poneumonia, HIV-1, virus Ebola, cytomegalovirus, Hepatite C, Dengue, SARS-coronavirus e parasitas como Leishmania pifanoi e o Schistosoma mansoni; seu derivado (ou mutação) CD209L (predominante no genótipo europeu) age mais restritamente sobre HIV, hepatite C, Ebola, e coronavirus, bem como o parasita Schistosoma mansoni.

Enquanto isso, cá estamos. O dia amanheceu, a cidade acordou com seus rugidos e eu continuo aqui divagando sobre a dengue, preocupada conosco, os gaúchos, até então afortunados pelo tênue ou inexistente contato com esse mal e tão orgulhosos de nossas raízes predominantemente européias. Penso que vamos começar a desejar ter tido um pouco mais que só os dedinhos dos pés criados na senzala.

Eu, que tenho o pézinho lá assentadinho na mamãe Africa com muito orgulho e carinho já vou cantando e pedindo a benção:

Saravá Oxalá, Oxalá Meu Pai!
Saravá Ogum, Patakori Ogunhê!
Saravá Xangô, Kaô Kabecile!
Saravá Obaluaie, Atotô Obaluaiê!
Saravá Oxossi, Okê Bamba O’Clima!
Saravá Iemanjá, Odô iá!
Saravá Oxum, Ora iê iê ô!
Saravá Iansã, Eparrei!

Nenhum comentário:

Postar um comentário