Eles vêm de onde o Estado não chega, e a família - se existe - não basta; onde se nasce por nada e se morre por menos ainda.
Cada vez que um político safado enfia no bolso o dinheiro público, um bonde inteiro nasce numa favela do Brasil.
Cada vez que um "cidadão de bem" sonega um imposto, um menino pobre cede e se junta à malta.
Cada vez que como sociedade lhe damos as costas, mais um menino pobre aumenta o bonde.
Fruto de nossa escolha de sociedade, eles são a ponta do iceberg composto pela maioria diariamente massacrada pela precariedade do retorno que damos em contrapartida aos inestimáveis serviços que prestam a nossos lares, veículos e escritórios acarpetados, climatizados e mobiliados com apuro e sofisticação.
Essa maioria deixada para trás de todo o progresso econômico, moral e social, para a qual o futuro traz como certeza apenas a repetição do presente. Sem esperança, se retrai:
Na ausência de uma relação espontãnea, natural, criadora com o mundo, livre de angústias, o "eu interior" desenvolve, assim, um sentimento geral de empobrecimento interior, expresso em queixas de vazio, morte, frieza, aridez, impotência, desolação, inutilidade da vida interior. (R.D. Laing, O Eu Dividido)
Segundo Laing, as mudanças por que passa esse "eu interior" rumo à psicose são:
1 - Torna-se "fantastizado" ou "volatilizado" e, assim, perde qualquer identidade firme e definitiva.
2 - Torna-se irreal.
3 - Torna-se empobrecido, vazio, morto e dividido.
4 - Torna-se cada vez mais carregado de ódio, temor e inveja.
Se a "vida interior" é inútil, e o mundo um ambiente árido e hostil; se a sociedade não propicia nenhum escape, o jovem homo-sapiens atordoado pela súbita explosão de testosterona da adolescência só pode reagir por instinto. E o instinto mais forte no homem é a violência.
Mas, não fechamos o livro aí porque, afinal, falamos de uma parte significativa da nossa própria sociedade e não de um punhado de alienígenas. E isso só leva a uma, irrefutável conclusão: SOMOS UMA SOCIEDADE DOENTE, UMA COLETIVIDADE ESQUIZOFRÊNICA dividida entre o "eu aparente" (classe média e elites) e o "eu interior" (pobres e miseráveis).
Vivemos, como sociedade, num "sistema do falso eu". Reflita sobre os sintomas descritos por Laing:
1 - O sistema do falso eu se torna cada vez mais extensivo.
2 - Torna-se autônomo.
3 - Torna-se "perseguido" pelos fragmentos de comportamento obrigatórios.
4 - Tudo que a ele pertence se torna cada vez mais morto, irreal, falso, mecânico.
Não precisa ser um analista pra concluir que grande parte do nosso comportamento como sociedade está milhas aquém da espontaneidade e insanamente mediado por gadgets e engenhocas; que cada vez mais nossa existência depende de coisas "mortas", de coisas mecânicas e isso traz reflexos na maneira como assimilamos o mundo e o ensinamos a nossas crianças.
Em nossas grandes cidades, mais que em qualquer outro lugar, objetivamos a tudo e a todos, despindo dos atributos de humanidade a massa com que nos defrontamos diariamente no trânsito, nas ruas e nos shopping centers. Todo o ressentimento que sentimos por saber que em nada somos diferentes dos anônimos que desfilam aos nossos olhos diariamente; neles projetamos como agressividade e isso nos faz temerosos demais para dar o passo que nos separa de uma existência autêntica.
Como a senhora X de Laing, somos o fantasma no jardim de ervas:
Os únicos seres viventes na planície eram bestas selvagens. Ratazanas infestavam a cidade destruída. Sua existência se representava por imagens de completo abandono estéril e árido. Essa morte existencial, essa morte-em-vida era a forma que dominava seu ser-no-mundo.
Nessa morte não havia esperanças, futuro, possibilidades. Tudo acontecera. Não havia prazer, fonte de uma possível satisfação ou prazer, porque o mundo estava tão morto e vazio quanto ela.
Em nossa sociedade, o consumo é a única opção aparentemente válida para esse vazio. E quem está alijado do consumo, jaz às margens sem outra opção que dar vazão à raiva, à inveja e à frustração.
Daí os bondes.
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