Hoje não é uma segunda normal. O normal seria ser ter meu sono perturbado desde as 4 da manhã pelo bucólico clip-clop seguido do farfalhar dos sacos plásticos revirados pelos catadores. Não aconteceu. Ao descer com o lixo, aí pelas 8 e meia, reparo não sem tristeza, na ausência da simpática senhora gordinha de óculos que costuma estar separando o lixo do outro lado da rua. Em dias normais, ela já está de plantão desde as 6 da manhã, distribuindo metodicamente nossos refugos: garrafas plásticas de um lado, caixas e papéis de outro, sacos e embalagens aqui e ali. Lá pelas 9 e meia, 10 horas, seu companheiro estacionaria a carroça, começando a carregar o lixo da rua. De duas a três viagens seriam necessárias para carregar todo o lixo da rua, e a operação se encerraria por volta das 2-3 da tarde. Durante todo esse tempo, a simpática senhora gordinha de óculos permaneceria de prontidão, atenta a qualquer residente retardatário.
Coisa de um mês atrás, ela fazia uma boa bagunça. Certa manhã, decidi intervir, pedindo educadamente que evitasse deixar restos espalhados. Com um sorriso ela aquiesceu. Fiz a minha parte, cuidando de dispor em sacolas separadas as garrafas, latas, plásticos e papéis. Passamos a nos cumprimentar, e ela, seu companheiro e a carroça passaram a fazer parte de meu ritual matinal das segundas-feiras. Meu primeiro contato humano da semana: uma troca de olhares, um sorriso e um aceno entre dois seres humanos separados tão somente pelas oportunidades com que a vida nos brindou.
Sei que sua presença incomodava o pessoal dos escritórios, que costuma estacionar de graça o dia inteiro, atulhando a rua com seus carros flex cinza (nas variações do prata ao grafite), pretos, brancos ou vermelhos (em suas nuances) - já repararam que 90% dos carros circulando por aí são nessas cores? Essas pessoas achavam ruim, porque por conta da simpática senhora gordinha de óculos tinham que estacionar mais adiante, o que os forçava a caminhar algumas dezenas de metros a mais toda a manhã de segunda. Esse pessoal não via a simpática senhora gordinha de óculos como uma trabalhadora prestando um serviço inestimável, mas sim como um incômodo lembrete de que Porto Alegre não é New York, e o Brasil ainda está muito longe de ser uma plena democracia com igualdade de direitos e oportunidades para todos.
Hoje ela não apareceu. Numa apocalíptica antevisão do que será nossa realidade em oito anos quando entrar em vigor a lei do banimento das carroças, a rua amanheceu livre do clip-clop e dos bostalhões. Alheias a isso, as pessoas dos escritórios desfilam conversando animadamente em seus celulares (elas nunca se dirigem a outro ser humano em carne e osso) sobre as futilidades da vida e do final de semana.
Como por mágica, meu lixo sumiu da calçada - quase como ele some em nossas fantasias do que acontece nos países do primeiro mundo, onde tudo é ordeiro, limpo e perfeito.
Fiquei a cismar, sentindo falta daquela troca de olhares, do sorriso e do aceno que por pouco que pareçam, de certa forma iluminavam minhas manhãs de segunda. Não posso deixar de pensar que esse afã pelo "progresso" só progride no sentido de nos destituir inexoravelmente das qualidades humanas que faziam do Brasil um lugar bom de se viver, um lugar onde na mais negra miséria e falta de perspectivas os corações ainda sabiam o caminho que leva à alegria de viver.
A cada ano que passa, vejo crescerem alarmantemente os sintomas da "prosperidade": individualismo, egoísmo, oportunismo, arrivismo e insensibilidade, enquanto na mídia abundam "receitas" pra driblar a depressão, a ansiedade, o stress, a hipertensão, a síndrome do pânico; e ao mesmo tempo ser sexy, bem-sucedido e proteger e multiplicar seu "patrimônio" - que inclui de forma esquizofrênica família, amigos e felicidade, como se fossem mensuráveis, quantificáveis e catalogáveis em termos de custo x benefício.
Vejo nas carroças o signo emblemático da opção dos arrivistas brasileiros por uma sociedade fria, desumana, insensível, sumamente egoísta e imediatista; mais propensa a banir do que lidar madura e racionalmente com seus defeitos e fragilidades. O expurgo das carroças, sob o pretexto de uma fantasiada melhoria no trânsito da cidade (como acabar com os engarrafamentos se todo o ano a frota cresce em pelo menos 30% enquanto as ruas permanecem as mesmas?); é o gesto simbólico de varrer para debaixo do tapete a incômoda realidade medieval da imensa maioria de nossa população; ao invés de buscar sua inclusão no século XXI.
Como Diógenes, acendo minha vela em plena luz do dia, na esperança de encontrar eco ao meu grito solitário por uma humanidade aparentemente perdida para as máquinas possantes e os telões de plasma. E sinto, sim, falta daquela troca de olhares, do sorriso e do aceno nas manhãs de segunda porque, enfim, é preciso força de caráter para saudar um semelhante com um sorriso acolhedor mesmo estando no meio do lixo.
Coisa de um mês atrás, ela fazia uma boa bagunça. Certa manhã, decidi intervir, pedindo educadamente que evitasse deixar restos espalhados. Com um sorriso ela aquiesceu. Fiz a minha parte, cuidando de dispor em sacolas separadas as garrafas, latas, plásticos e papéis. Passamos a nos cumprimentar, e ela, seu companheiro e a carroça passaram a fazer parte de meu ritual matinal das segundas-feiras. Meu primeiro contato humano da semana: uma troca de olhares, um sorriso e um aceno entre dois seres humanos separados tão somente pelas oportunidades com que a vida nos brindou.
Sei que sua presença incomodava o pessoal dos escritórios, que costuma estacionar de graça o dia inteiro, atulhando a rua com seus carros flex cinza (nas variações do prata ao grafite), pretos, brancos ou vermelhos (em suas nuances) - já repararam que 90% dos carros circulando por aí são nessas cores? Essas pessoas achavam ruim, porque por conta da simpática senhora gordinha de óculos tinham que estacionar mais adiante, o que os forçava a caminhar algumas dezenas de metros a mais toda a manhã de segunda. Esse pessoal não via a simpática senhora gordinha de óculos como uma trabalhadora prestando um serviço inestimável, mas sim como um incômodo lembrete de que Porto Alegre não é New York, e o Brasil ainda está muito longe de ser uma plena democracia com igualdade de direitos e oportunidades para todos.
Hoje ela não apareceu. Numa apocalíptica antevisão do que será nossa realidade em oito anos quando entrar em vigor a lei do banimento das carroças, a rua amanheceu livre do clip-clop e dos bostalhões. Alheias a isso, as pessoas dos escritórios desfilam conversando animadamente em seus celulares (elas nunca se dirigem a outro ser humano em carne e osso) sobre as futilidades da vida e do final de semana.
Como por mágica, meu lixo sumiu da calçada - quase como ele some em nossas fantasias do que acontece nos países do primeiro mundo, onde tudo é ordeiro, limpo e perfeito.
Fiquei a cismar, sentindo falta daquela troca de olhares, do sorriso e do aceno que por pouco que pareçam, de certa forma iluminavam minhas manhãs de segunda. Não posso deixar de pensar que esse afã pelo "progresso" só progride no sentido de nos destituir inexoravelmente das qualidades humanas que faziam do Brasil um lugar bom de se viver, um lugar onde na mais negra miséria e falta de perspectivas os corações ainda sabiam o caminho que leva à alegria de viver.
A cada ano que passa, vejo crescerem alarmantemente os sintomas da "prosperidade": individualismo, egoísmo, oportunismo, arrivismo e insensibilidade, enquanto na mídia abundam "receitas" pra driblar a depressão, a ansiedade, o stress, a hipertensão, a síndrome do pânico; e ao mesmo tempo ser sexy, bem-sucedido e proteger e multiplicar seu "patrimônio" - que inclui de forma esquizofrênica família, amigos e felicidade, como se fossem mensuráveis, quantificáveis e catalogáveis em termos de custo x benefício.
Vejo nas carroças o signo emblemático da opção dos arrivistas brasileiros por uma sociedade fria, desumana, insensível, sumamente egoísta e imediatista; mais propensa a banir do que lidar madura e racionalmente com seus defeitos e fragilidades. O expurgo das carroças, sob o pretexto de uma fantasiada melhoria no trânsito da cidade (como acabar com os engarrafamentos se todo o ano a frota cresce em pelo menos 30% enquanto as ruas permanecem as mesmas?); é o gesto simbólico de varrer para debaixo do tapete a incômoda realidade medieval da imensa maioria de nossa população; ao invés de buscar sua inclusão no século XXI.
Como Diógenes, acendo minha vela em plena luz do dia, na esperança de encontrar eco ao meu grito solitário por uma humanidade aparentemente perdida para as máquinas possantes e os telões de plasma. E sinto, sim, falta daquela troca de olhares, do sorriso e do aceno nas manhãs de segunda porque, enfim, é preciso força de caráter para saudar um semelhante com um sorriso acolhedor mesmo estando no meio do lixo.
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