23 de nov. de 2008

A BENGALADA


Estava lá eu, um tanto frustrada porque a máquina do meu banco não tinha dinheiro, esperando enquanto minha mãe imprimia alguns extratos no caixa automático.

Como soe às engenhocas modernas, a traquitanda cuspiu uma folha como se estivesse em rigorosos treinos para as olimpíadas dos caixas eletrônicos. Prontamente me abaixei e recolhi o papel, reparando no olhar de reprovação da senhora que aguardava na fila apoiada em sua bengala.

Como boa filha (ou na ilusão de que é assim que uma boa filha deve proceder), tratei logo de guardar o extrato na bolsa de minha mãe, encarapitada sobre sacolas de compras no carrinho do supermercado. Nesse instante de distração em meu zelo e guarda, a máquina ejetou outra folhinha de extrato. Emaranhada pelas sacolas, bolsa, carteira, óculos, celular (desligado, como sempre), extrato, e um monte de coisas que cabem numa bolsinha tão pequena; assisti impotente minha mãe se abaixando toda guenza com a ajuda da bengala pra juntar o raio do papelzinho.

- Podias ter esperado, que eu fazia isso pra ti. - protestei do alto de minha autoridade filial.

- Por que, se sou bem capaz de me abaixar? - retrucou minha mãe com um sorriso divertido (é assim que ela costuma indicar que estamos avançando o sinal).

Abri a boca pra argumentar, mas antes que me saísse um "ai", a senhora que aguardava na fila apoiada em sua bengala desferiu:

- Quando é que vocês vão entender que nós temos que nos abaixar? Que o fato de estarmos velhas não significa que estamos incapacitadas?

Gente, a coisa virou um tandéu, com a minha mãe fazendo eco e acrescentado queixas pra divertimento da fila que se estendia já até a porta do subsolo do supermercado. Não precisa dizer que pela minha cara passaram todas as nuances do arco-íris.

Murchei. Fui saindo de fininho com a rabo entre as pernas. Se ainda pudesse, minha mãe teria saído aos pulos e gritos de give me ten!, tamanho era o júbilo pela batalha recém vencida.

- Tu me xingou... - protestei num fio de voz, ainda zonza daquela saraivada toda.

Ela se limitou a sorrir, e os olhos de um verde que só ela tem, cintilaram marotos. Meu coração chegou a tropeçar numa batida: aquele olhar era muito, mas muito mais jovem que o meu.

De fato, por algum tempo ainda até que a poeira da bengalada assentasse, posso jurar que quem sentava ao meu lado naquele carro não tinha mais que uns 18 ou 20 anos. Foi um momento tão bonito, mas tão bonito, que sinceramente não me importo nem um pouco se o pessoal da fila saiu de lá rindo da minha cara.

É claro que também fiquei chateada. Mas não pela saraivada. A verdade é que excesso de zelo faz tanto mal quanto a sua ausência. Fiquei chateada, porque me flagrei falhando no respeito que prezo acima de tudo. Caí na armadilha, entende?

É que ao vê-los tão frágeis, ao mesmo tempo que os sabemos tão caros ao nosso afeto é muito, mas muito difícil lembrar sempre que por trás daquele corpo alquebrado, daqueles passos hesitantes; persiste uma mente perfeitamente lúcida, lutando contra as limitações impostas pela idade.

Se é verdade que lutar contra o tempo é uma batalha perdida, também é verdade que todo o músculo que não é usado se atrofia; e isso vale pra todo mundo. Portanto, certas estavam minha mãe e sua fervorosa aliada.

A bengalada atingiu em cheio a minha soberba.

Soberba, sim. De fato, é com soberba que vejo a imensa maioria dos filhos se dirigirem aos pais, do "alto" de sua juventude e "infalibilidade", totalmente esquecidos que juventude é circunstancial e infalibilidade não passa de uma ilusão.

Não raro percorrendo as ruas ou os corredores do supermercado, me deparo com filhos e filhas tratando a gritos seus velhos progenitores. Dá vontade de interferir e meter a boca. Não raro, em rodas de conversa, ou falando com gente por aqui e por ali, flagro filhos opinando sobre o que seria melhor para a vida de seus pais, como se seu juízo fosse privilegiado. Mas que juízo, cara-pálida?!

Nosso "juízo" ainda é geralmente parcial, relativo; pintado nas cores de nossa inexperiência, de nossas expectativas: vivemos ainda agarrados ao vício pueril de pintar a realidade nas cores de nossas fantasias sobre o que deveria ser, de esperar das pessoas que sejam e ajam como quem as imaginamos ser, porque nunca ou raramente nos damos ao trabalho de ouvir e conhecer mesmo quem está mais próximo de nós, particularmente os nossos pais.

Pior, nos dias de hoje, onde todo mundo trabalha e toca sua vida longe dos pais, esse "juízo" costuma servir mais aos interesses e comodidade próprios do que a qualquer outra coisa. Como é que podemos saber o que é melhor pra nossos pais (e, por extensão, pra qualquer outra pessoa incluindo nossos filhos), se mal e porcamente sabemos o que é melhor para nós mesmos?

Pra saber o que é melhor pra nós, primeiro temos que nos conhecer, e se isso já é complicado e não raro se passa uma vida inteira sem saber; o que dizer de nossos pais? O quanto deles realmente conhecemos?

Você, por acaso, sabe o que sua mãe ou pai idoso mais queria da vida quando tinha 16 anos? Que sonhos acalentava? Quais seus filmes, seus livros, suas músicas prediletos? Que escolhas fez na vida, com quais desafios se deparou, como e quando os superou? Que interesses na vida acalenta ainda hoje, guardadinhos lá bem fundo no baú?

Provavelmente, se sentar com seu pai ou com sua mãe por mais de 15 minutos e longe da zoeira dos almoços de família; você vai descobrir uma pessoa totalmente diferente daquela a quem se acostumou pela superficialidade que caracteriza o convívio diário das famílias, particularmente desde que a tv se tornou o centro das atenções, calando a tudo e a todos.

Me esforço pra ser uma boa filha, que no meu entender é uma equação bem simples: aplicar a mesma compreensão e respeito incondicionais que recebi da infância à maturidade. Nunca, ao longo de todas as fases, dramas, tragédias, alegrias e, particularmente, no curso dos erros que cometi (e olha que foram muitos), ouvi de meus pais mais do que "o que devias fazer é...". No máximo uma daquelas perguntas que enfiam a pulga bem na preguinha atrás da orelha e fazem a gente parar e pensar um bocado; ou um "eu acho que...".

Reparo à minha volta que há muito mais facilidade entre as pessoas da minha geração em aplicar essa lógica a seus filhos do que a seus próprios pais.

É claro que é difícil resistir. Velho muitas vezes tem aquela coisa, aquela casmurrice que faz a gente querer saltar das tamancas e rodar a baiana; porque eles insistem em coisas que na nossa ótica parecem totalmente ilógicas e irracionais. Meu tio, por exemplo, prefere não escutar a usar os aparelhos de surdez, porque o troço apita e incomoda. A avó de uma amiga minha, mesmo aos 86 anos insistia em caminhar todo o dia sozinha até o supermercado, arriscando o pescoço pra atravessar a Protásio, uma das ruas mais movimentadas aqui de POA.

É um equilíbrio muito delicado, principalmente quando envolve riscos, e confesso que vê-la se abaixando com tanta dificuldade só pra pegar um extrato do chão me apertou tanto o coração que lágrimas me vieram aos olhos. Mas é essa a realidade dela, é esse o corpo no qual habita uma mente perfeitamente lúcida, brilhante até; e se não fizer esse esforço sempre que necessário, acabará perdendo mais este movimento, acrescentando mais uma restrição à longa lista com a qual já convive.

Canso de ver pessoas de idade tratadas como crianças, canso de ver filhos e filhas discorrendo a outras pessoas sobre as mazelas de seus pais e mães na cara deles, na terceira pessoa, como se não estivessem lá. Canso de ver filhos e filhas criticando a casmurrice de seus pais, sua teimosia em rejeitar o "lógico", o "prático", o "funcional"; teimando em seus "velhos" hábitos como morar onde gostam, dirigir nesse trânsito louco, irem sózinhos às compras; tomarem conta do próprio nariz.

Mas não é o que fizeram pela vida a fora?

Ao contrário do que essa nossa sociedade apregoa, a velhice não é uma doença. É uma fase da vida atualmente menos compreendida e respeitada do que a infância.

Na verdade, à excessão de processos degenerativos como o Alzheimer, a velhice só impõe limitações físicas. De resto, a mente segue lúcida e atenta do jeito que foi pela vida a fora. As emoções afloram mais facilmente, é verdade, mas isso é mera conseqüência da mudança na maneira de se encarar a vida quando sua finitude se torna presente do que de qualquer outra coisa.

Reparo à minha volta nesse exército de pais dando mais ouvidos às turrices de seus filhos pequenos do que à experiência de seus próprios pais, e confesso que isso me preocupa: um povo que negligencia sua história está fadado a repetir os mesmos erros do passado. E é exatamente isso que está acontecendo: por desprezarmos a experiência de vida dos mais velhos, estamos regredindo como sociedade, nos encaminhando a largos passos a um estágio tribal high-tech.

Um comentário:

  1. leitura agradável e tocante. Evocou minha querida e saudosa Profe. Guiomar. Saltaram as lágrimas. Feliz de quem conviveu com sua sabedoria e simplicidade.

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