Nem em seus mais loucos devaneios a adorável tia da foto jamais ousara imaginar que um dia estaria de pé naquela praça, cercada por milhares de pessoas, festejando a eleição de um homem de cor para o cargo mais poderoso dos Estados Unidos e, por consequência, do mundo. Isso, porque ela estava lá quando negro só sentava no banco de trás do ônibus, quando negro baixava a cabeça e repetia "sim, senhor" porque essa era a vida do negro: limpar a sujeira do branco e ainda mostrar gratidão pela gorjeta. Essa era a vida do negro, e qualquer tentativa de mudar essa realidade, era subversão.
Em dezembro de 1955 (pasme), a costureira negra Rosa Parks (a “Mãe dos Direitos Civis”) entrou num ônibus de volta para casa após um dia de trabalho e, estafada, sentou-se nos bancos da frente do ônibus - local proibido aos negros pelas leis segregacionistas do estado. Intimada a dar seu lugar a um passageiro branco e sentar no fundo do veículo, recusou-se. Foi presa, julgada e condenada.
Revoltada, a comunidade negra de Montgomery promoveu um boicote aos transportes públicos da cidade. O protesto durou 382 dias, e com o sistema público de transportes à beira da falência, a prefeitura teve que capitular, extinguindo a lei que sustentava o apartheid nos ônibus da cidade.
Em 1957, nove estudantes negros conseguiram nas cortes federais o direito de estudarem no Ginásio Central de Little Rock, no Arkansas. No primeiro dia de aula, sob os apupos da comunidade local, foram impedidos de entrar nas dependências do ginásio pela guarda estadual enviada pelo governador. Foi precisa a intervenção federal, com o envio de pára-quedistas para garantir o acesso dos garotos à escola. Ao final do ano letivo, a comunidade de Little Rock preferiu fechar aquela instituição de ensino a permitir o ingresso de mais alunos negros em suas dependências.
Em 1961, estudantes negros e brancos promoveram um protesto ocupando juntos locais onde não era permitido o ingresso de pessoas de cor.
Em 1962, a "insistência" de James Meredith em assistir às aulas a que tinha direito na Universidade do Mississipi gerou uma onda crescente de violência, culminando com a morte de duas pessoas e ferimentos à bala em 28 agentes federais e mais de 160 feridos entre a população.
Em agosto de 1963, Martin Luther King comandou a histórica marcha sobre Washington. Foi a maior aglomeração pacífica realizada nos Estados Unidos com propósitos de integração racial, direito de moradia digna, pleno emprego, direito ao voto e educação integrada.
Os eventos de 1964, que culminaram com a promulgação por Lyndon Johnson da Lei dos Direitos Civis, são conhecidos como "MIssissipi em Chamas" (relatados por Alan Parker no filme omônimo, que recomendo). No mesmo ano, Martin Luther King foi agraciado com o Premio Nobel da Paz.
Ainda assim, como nos Estados Unidos cada Estado tem plena autonomia legislativa, a Lei dos Direitos Civis não entrou em prática em todo o país. Em 1965, os negros do Alabama tiveram suas inscrições como votantes rejeitadas pelo Estado. Martin Luther King foi ao Alabama. Ele e centenas de manifestantes foram presos, mas as manifestações continuaram e acabaram em violência por toda a cidade, com a morte de uma manifestante pela polícia. Nos dias que se seguiram, choques entre civis brancos locais, policiais a cavalo e manifestantes negros resultaram em tumultos generalizados com mortos e feridos, transmitidos pela televisão para todo o país. As cenas causaram a mesma indignação dos fatos ocorridos no Mississipi no ano anterior e permitiram ao Presidente Johnson conseguir aprovar junto ao Congresso a Lei do Direito de Voto em 1965. Esta decisão provocou a famosa lamentação de Lyndon Johnson de que “com essa assinatura acabo de perder os votos do sul na próxima eleição”.
O direito ao voto negro mudou para sempre a face política do sul dos EUA, fazendo com que, em 1966, o número de negros eleitos para cargos públicos no Mississipi, o mais racista dos estados sulistas, fosse maior do que em qualquer outro estado do país. Em 1965, pouco mais de 100 negros foram eleitos para mandatos públicos nos EUA. Hoje, os agora chamados afro-americanos são mais de 8.000, a maioria em estados do sul.
Portanto, foi só a partir de 1966, 11 anos depois da "insurreição" de Rosa Parks, que os negros começaram a poder votar nos Estados Unidos.
Desde então, muitas mudanças ocorreram. Aos poucos, pessoas de cor passaram a ocupar cargos cada vez mais relevantes na vida pública norte-americana: deputados, prefeitos, governadores, senadores, secretários de estado, ministros... mas daí à presidência da república aparentemente era sonhar alto demais. Até mesmo porque, no dia a dia, para a imensa maioria dos negros norte-americanos nos guetos e currais do Alabama a Chicago, pouco ou nada mudou desde a abolição.
A segregação racial ainda é uma constante e violenta realidade na América. Como em poucos outros lugares do mundo, o ódio racial lá se faz presente e é parte do cotidiano de negros e brancos.
Se, por um lado, a eleição de Barak Obama, um mulato cujo pai além de negro é muçulmano aponta para um amadurecimento da sociedade norte-americana; por outro, podem ter certeza, há de acirrar o atrito. As novas gerações que se auto-denominam "afro-descendentes" por incorporarem elas próprias o segregacionismo, não têm mais a perseverança e, porque não dizer, a apatia de seus progenitores. Do outro lado, por todos os rincões do país, pipocam legiões de rednecks armados até os dentes, filhos, netos e bisnetos dos mesmos rednecks que ainda não se conformaram com a abolição, quanto mais dizer com a integração dos negros à sociedade. Se vinham proliferando há decadas, alimentadas por esse ódio, tenha certeza que agora elas irão explodir, porque para o redneck da gema a idéia de um presidente "de cor" é simplesmente inadmissível.
Barak Obama terá muito trabalho pra arrumar a casa: crise financeira, Oriente Médio... Mas pior que tudo isso são os inimigos em seu próprio território. E temo por isso.
Fico com o histórico discurso de Martin Luther King e a lembrança de que nem o Nobel da Paz impediu que em abril de 1968 ele fosse assassinado em Memphis, Tenessee, por um branco que havia escapado da prisão:
Eu estou contente em unir-me com vocês no dia que entrará para a história como a maior demonstração pela liberdade na história de nossa nação.
Cem anos atrás, um grande americano, na qual estamos sob sua simbólica sombra, assinou a Proclamação de Emancipação. Esse importante decreto veio como um grande farol de esperança para milhões de escravos negros que tinham murchados nas chamas da injustiça. Ele veio como uma alvorada para terminar a longa noite de seus cativeiros.
Mas cem anos depois, o Negro ainda não é livre.
Cem anos depois, a vida do Negro ainda é tristemente inválida pelas algemas da segregação e as cadeias de discriminação.
Cem anos depois, o Negro vive em uma ilha só de pobreza no meio de um vasto oceano de prosperidade material. Cem anos depois, o Negro ainda adoece nos cantos da sociedade americana e se encontram exilados em sua própria terra. Assim, nós viemos aqui hoje para dramatizar sua vergonhosa condição.
De certo modo, nós viemos à capital de nossa nação para trocar um cheque. Quando os arquitetos de nossa república escreveram as magníficas palavras da Constituição e a Declaração da Independência, eles estavam assinando uma nota promissória para a qual todo americano seria seu herdeiro. Esta nota era uma promessa que todos os homens, sim, os homens negros, como também os homens brancos, teriam garantidos os direitos inalienáveis de vida, liberdade e a busca da felicidade. Hoje é óbvio que aquela América não apresentou esta nota promissória. Em vez de honrar esta obrigação sagrada, a América deu para o povo negro um cheque sem fundo, um cheque que voltou marcado com "fundos insuficientes".
Mas nós nos recusamos a acreditar que o banco da justiça é falível. Nós nos recusamos a acreditar que há capitais insuficientes de oportunidade nesta nação. Assim nós viemos trocar este cheque, um cheque que nos dará o direito de reclamar as riquezas de liberdade e a segurança da justiça.
Nós também viemos para recordar à América dessa cruel urgência. Este não é o momento para descansar no luxo refrescante ou tomar o remédio tranqüilizante do gradualismo.
Agora é o tempo para transformar em realidade as promessas de democracia.
Agora é o tempo para subir do vale das trevas da segregação ao caminho iluminado pelo sol da justiça racial.
Agora é o tempo para erguer nossa nação das areias movediças da injustiça racial para a pedra sólida da fraternidade. Agora é o tempo para fazer da justiça uma realidade para todos os filhos de Deus.
Seria fatal para a nação negligenciar a urgência desse momento. Este verão sufocante do legítimo descontentamento dos Negros não passará até termos um renovador outono de liberdade e igualdade. Este ano de 1963 não é um fim, mas um começo. Esses que pensam que o Negro agora estará contente, terão um violento despertar se a nação voltar aos negócios de sempre.
Mas há algo que eu tenho que dizer ao meu povo que se dirige ao portal que conduz ao palácio da justiça. No processo de conquistar nosso legítimo direito, nós não devemos ser culpados de ações de injustiças. Não vamos satisfazer nossa sede de liberdade bebendo da xícara da amargura e do ódio. Nós sempre temos que conduzir nossa luta num alto nível de dignidade e disciplina. Nós não devemos permitir que nosso criativo protesto se degenere em violência física. Ainda mais uma vez nós temos que subir às majestosas alturas da reunião da força física com a força de alma. Nossa nova e maravilhosa combatividade mostrou à comunidade negra que não devemos desconfiar de todas as pessoas brancas, de muitos de nossos irmãos brancos, como comprovamos pela presença deles aqui hoje, pois entenderam que o destino deles está ligado ao nosso destino. Eles entenderam que a liberdade deles é ligada indissoluvelmente à nossa liberdade. Nós não podemos caminhar sós.
E como nós caminhamos, nós temos que fazer a promessa que sempre marcharemos à frente. Nós não podemos retroceder. Há quem pergunte aos devotos dos direitos civis, "Quando vocês estarão satisfeitos?"
Nós nunca estaremos satisfeitos enquanto o Negro for vítima dos horrores indizíveis da brutalidade policial. Nós nunca estaremos satisfeitos enquanto nossos corpos, pesados com a fadiga da viagem, não puderem ter hospedagem nos motéis das estradas e nos hotéis das cidades. Nós não estaremos satisfeitos enquanto um Negro não puder votar no Mississipi e um Negro em Nova Iorque acreditar que ele não tem motivo para votar. Não, não, nós não estamos satisfeitos e nós não estaremos satisfeitos até que a justiça e a retidão rolem abaixo como águas de uma poderosa correnteza.
Eu não esqueci que alguns de você vieram até aqui após grandes testes e sofrimentos. Alguns de você vieram recentemente de celas estreitas das prisões. Alguns de vocês vieram de áreas onde sua busca pela liberdade deixou marcas pelas tempestades das perseguições e pelos ventos de brutalidade policial. Você são o veteranos do sofrimento. Continuem trabalhando com a fé que sofrimento imerecido é redentor. Voltem para o Mississippi, voltem para o Alabama, voltem para a Carolina do Sul, voltem para a Geórgia, voltem para Louisiana, voltem para as ruas sujas e guetos de nossas cidades do norte, sabendo que de alguma maneira essa situação pode e será mudada. Não se deixem cair no vale de desespero.
Eu digo a você hoje, meus amigos, que embora nós enfrentemos as dificuldades de hoje e amanhã, eu ainda tenho um sonho. É um sonho profundamente enraizado no sonho americano.
Eu tenho um sonho que um dia esta nação se levantará e viverá o verdadeiro significado de sua crença - nós celebraremos essas verdades e elas serão claras para todos: que os homens são criados iguais.
Eu tenho um sonho que um dia nas colinas vermelhas da Geórgia os filhos dos descendentes de escravos e os filhos dos desdentes dos donos de escravos poderão sentar juntos à mesa da fraternidade.
Eu tenho um sonho que um dia, até mesmo no estado de Mississippi, um estado que transpira com o calor da injustiça, que transpira com o calor de opressão, será transformado em um oásis de liberdade e justiça.
Eu tenho um sonho que minhas quatro pequenas crianças vão um dia viver em uma nação onde elas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter. Eu tenho um sonho hoje!
Eu tenho um sonho que um dia, no Alabama, com seus racistas malignos, com seu governador que tem os lábios gotejando palavras de intervenção e negação; nesse justo dia no Alabama meninos negros e meninas negras poderão unir as mãos com meninos brancos e meninas brancas como irmãs e irmãos. Eu tenho um sonho hoje!
Eu tenho um sonho que um dia todo vale será exaltado, e todas as colinas e montanhas virão abaixo, os lugares ásperos serão aplainados e os lugares tortuosos serão endireitados e a glória do Senhor será revelada e toda a carne estará junta.
Esta é nossa esperança. Esta é a fé com que regressarei para o Sul. Com esta fé nós poderemos cortar da montanha do desespero uma pedra de esperança. Com esta fé nós poderemos transformar as discórdias estridentes de nossa nação em uma bela sinfonia de fraternidade. Com esta fé nós poderemos trabalhar juntos, rezar juntos, lutar juntos, para ir encarcerar juntos, defender a liberdade juntos, e quem sabe nós seremos um dia livres. Este será o dia, este será o dia quando todas as crianças de Deus poderão cantar com um novo significado.
"Meu país, doce terra de liberdade, eu te canto.
Terra onde meus pais morreram, terra do orgulho dos peregrinos,
De qualquer lado da montanha, ouço o sino da liberdade!"
E se a América é uma grande nação, isto tem que se tornar verdadeiro.
E assim ouvirei o sino da liberdade no extraordinário topo da montanha de New Hampshire.
Ouvirei o sino da liberdade nas poderosas montanhas poderosas de Nova York.
Ouvirei o sino da liberdade nos engrandecidos Alleghenies da Pennsylvania.
Ouvirei o sino da liberdade nas montanhas cobertas de neve Rockies do Colorado.
Ouvirei o sino da liberdade nas ladeiras curvas da Califórnia.
Mas não é só isso. Ouvirei o sino da liberdade na Montanha de Pedra da Geórgia.
Ouvirei o sino da liberdade na Montanha de Vigilância do Tennessee.
Ouvirei o sino da liberdade em todas as colinas do Mississipi.
Em todas as montanhas, ouviu o sino da liberdade.
E quando isto acontecer, quando nós permitirmos ao sino da liberdade soar, quando nós deixarmos que ecoe em toda moradia e todo vilarejo, em todo estado e em toda cidade; nós poderemos vislumbrar o dia em que todas as crianças de Deus, homens pretos e homens brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, poderão unir mãos e cantar nas palavras do velho spiritual negro:
"Livre afinal, livre afinal.
Agradeço ao Deus todo-poderoso: nós somos livres afinal."
Martin Luther King, 28 de agosto de 1963.
A segregação racial ainda é uma constante e violenta realidade na América. Como em poucos outros lugares do mundo, o ódio racial lá se faz presente e é parte do cotidiano de negros e brancos.
Se, por um lado, a eleição de Barak Obama, um mulato cujo pai além de negro é muçulmano aponta para um amadurecimento da sociedade norte-americana; por outro, podem ter certeza, há de acirrar o atrito. As novas gerações que se auto-denominam "afro-descendentes" por incorporarem elas próprias o segregacionismo, não têm mais a perseverança e, porque não dizer, a apatia de seus progenitores. Do outro lado, por todos os rincões do país, pipocam legiões de rednecks armados até os dentes, filhos, netos e bisnetos dos mesmos rednecks que ainda não se conformaram com a abolição, quanto mais dizer com a integração dos negros à sociedade. Se vinham proliferando há decadas, alimentadas por esse ódio, tenha certeza que agora elas irão explodir, porque para o redneck da gema a idéia de um presidente "de cor" é simplesmente inadmissível.
Barak Obama terá muito trabalho pra arrumar a casa: crise financeira, Oriente Médio... Mas pior que tudo isso são os inimigos em seu próprio território. E temo por isso.
Fico com o histórico discurso de Martin Luther King e a lembrança de que nem o Nobel da Paz impediu que em abril de 1968 ele fosse assassinado em Memphis, Tenessee, por um branco que havia escapado da prisão:
Eu estou contente em unir-me com vocês no dia que entrará para a história como a maior demonstração pela liberdade na história de nossa nação.
Cem anos atrás, um grande americano, na qual estamos sob sua simbólica sombra, assinou a Proclamação de Emancipação. Esse importante decreto veio como um grande farol de esperança para milhões de escravos negros que tinham murchados nas chamas da injustiça. Ele veio como uma alvorada para terminar a longa noite de seus cativeiros.
Mas cem anos depois, o Negro ainda não é livre.
Cem anos depois, a vida do Negro ainda é tristemente inválida pelas algemas da segregação e as cadeias de discriminação.
Cem anos depois, o Negro vive em uma ilha só de pobreza no meio de um vasto oceano de prosperidade material. Cem anos depois, o Negro ainda adoece nos cantos da sociedade americana e se encontram exilados em sua própria terra. Assim, nós viemos aqui hoje para dramatizar sua vergonhosa condição.
De certo modo, nós viemos à capital de nossa nação para trocar um cheque. Quando os arquitetos de nossa república escreveram as magníficas palavras da Constituição e a Declaração da Independência, eles estavam assinando uma nota promissória para a qual todo americano seria seu herdeiro. Esta nota era uma promessa que todos os homens, sim, os homens negros, como também os homens brancos, teriam garantidos os direitos inalienáveis de vida, liberdade e a busca da felicidade. Hoje é óbvio que aquela América não apresentou esta nota promissória. Em vez de honrar esta obrigação sagrada, a América deu para o povo negro um cheque sem fundo, um cheque que voltou marcado com "fundos insuficientes".
Mas nós nos recusamos a acreditar que o banco da justiça é falível. Nós nos recusamos a acreditar que há capitais insuficientes de oportunidade nesta nação. Assim nós viemos trocar este cheque, um cheque que nos dará o direito de reclamar as riquezas de liberdade e a segurança da justiça.
Nós também viemos para recordar à América dessa cruel urgência. Este não é o momento para descansar no luxo refrescante ou tomar o remédio tranqüilizante do gradualismo.
Agora é o tempo para transformar em realidade as promessas de democracia.
Agora é o tempo para subir do vale das trevas da segregação ao caminho iluminado pelo sol da justiça racial.
Agora é o tempo para erguer nossa nação das areias movediças da injustiça racial para a pedra sólida da fraternidade. Agora é o tempo para fazer da justiça uma realidade para todos os filhos de Deus.
Seria fatal para a nação negligenciar a urgência desse momento. Este verão sufocante do legítimo descontentamento dos Negros não passará até termos um renovador outono de liberdade e igualdade. Este ano de 1963 não é um fim, mas um começo. Esses que pensam que o Negro agora estará contente, terão um violento despertar se a nação voltar aos negócios de sempre.
Mas há algo que eu tenho que dizer ao meu povo que se dirige ao portal que conduz ao palácio da justiça. No processo de conquistar nosso legítimo direito, nós não devemos ser culpados de ações de injustiças. Não vamos satisfazer nossa sede de liberdade bebendo da xícara da amargura e do ódio. Nós sempre temos que conduzir nossa luta num alto nível de dignidade e disciplina. Nós não devemos permitir que nosso criativo protesto se degenere em violência física. Ainda mais uma vez nós temos que subir às majestosas alturas da reunião da força física com a força de alma. Nossa nova e maravilhosa combatividade mostrou à comunidade negra que não devemos desconfiar de todas as pessoas brancas, de muitos de nossos irmãos brancos, como comprovamos pela presença deles aqui hoje, pois entenderam que o destino deles está ligado ao nosso destino. Eles entenderam que a liberdade deles é ligada indissoluvelmente à nossa liberdade. Nós não podemos caminhar sós.
E como nós caminhamos, nós temos que fazer a promessa que sempre marcharemos à frente. Nós não podemos retroceder. Há quem pergunte aos devotos dos direitos civis, "Quando vocês estarão satisfeitos?"
Nós nunca estaremos satisfeitos enquanto o Negro for vítima dos horrores indizíveis da brutalidade policial. Nós nunca estaremos satisfeitos enquanto nossos corpos, pesados com a fadiga da viagem, não puderem ter hospedagem nos motéis das estradas e nos hotéis das cidades. Nós não estaremos satisfeitos enquanto um Negro não puder votar no Mississipi e um Negro em Nova Iorque acreditar que ele não tem motivo para votar. Não, não, nós não estamos satisfeitos e nós não estaremos satisfeitos até que a justiça e a retidão rolem abaixo como águas de uma poderosa correnteza.
Eu não esqueci que alguns de você vieram até aqui após grandes testes e sofrimentos. Alguns de você vieram recentemente de celas estreitas das prisões. Alguns de vocês vieram de áreas onde sua busca pela liberdade deixou marcas pelas tempestades das perseguições e pelos ventos de brutalidade policial. Você são o veteranos do sofrimento. Continuem trabalhando com a fé que sofrimento imerecido é redentor. Voltem para o Mississippi, voltem para o Alabama, voltem para a Carolina do Sul, voltem para a Geórgia, voltem para Louisiana, voltem para as ruas sujas e guetos de nossas cidades do norte, sabendo que de alguma maneira essa situação pode e será mudada. Não se deixem cair no vale de desespero.
Eu digo a você hoje, meus amigos, que embora nós enfrentemos as dificuldades de hoje e amanhã, eu ainda tenho um sonho. É um sonho profundamente enraizado no sonho americano.
Eu tenho um sonho que um dia esta nação se levantará e viverá o verdadeiro significado de sua crença - nós celebraremos essas verdades e elas serão claras para todos: que os homens são criados iguais.
Eu tenho um sonho que um dia nas colinas vermelhas da Geórgia os filhos dos descendentes de escravos e os filhos dos desdentes dos donos de escravos poderão sentar juntos à mesa da fraternidade.
Eu tenho um sonho que um dia, até mesmo no estado de Mississippi, um estado que transpira com o calor da injustiça, que transpira com o calor de opressão, será transformado em um oásis de liberdade e justiça.
Eu tenho um sonho que minhas quatro pequenas crianças vão um dia viver em uma nação onde elas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter. Eu tenho um sonho hoje!
Eu tenho um sonho que um dia, no Alabama, com seus racistas malignos, com seu governador que tem os lábios gotejando palavras de intervenção e negação; nesse justo dia no Alabama meninos negros e meninas negras poderão unir as mãos com meninos brancos e meninas brancas como irmãs e irmãos. Eu tenho um sonho hoje!
Eu tenho um sonho que um dia todo vale será exaltado, e todas as colinas e montanhas virão abaixo, os lugares ásperos serão aplainados e os lugares tortuosos serão endireitados e a glória do Senhor será revelada e toda a carne estará junta.
Esta é nossa esperança. Esta é a fé com que regressarei para o Sul. Com esta fé nós poderemos cortar da montanha do desespero uma pedra de esperança. Com esta fé nós poderemos transformar as discórdias estridentes de nossa nação em uma bela sinfonia de fraternidade. Com esta fé nós poderemos trabalhar juntos, rezar juntos, lutar juntos, para ir encarcerar juntos, defender a liberdade juntos, e quem sabe nós seremos um dia livres. Este será o dia, este será o dia quando todas as crianças de Deus poderão cantar com um novo significado.
"Meu país, doce terra de liberdade, eu te canto.
Terra onde meus pais morreram, terra do orgulho dos peregrinos,
De qualquer lado da montanha, ouço o sino da liberdade!"
E se a América é uma grande nação, isto tem que se tornar verdadeiro.
E assim ouvirei o sino da liberdade no extraordinário topo da montanha de New Hampshire.
Ouvirei o sino da liberdade nas poderosas montanhas poderosas de Nova York.
Ouvirei o sino da liberdade nos engrandecidos Alleghenies da Pennsylvania.
Ouvirei o sino da liberdade nas montanhas cobertas de neve Rockies do Colorado.
Ouvirei o sino da liberdade nas ladeiras curvas da Califórnia.
Mas não é só isso. Ouvirei o sino da liberdade na Montanha de Pedra da Geórgia.
Ouvirei o sino da liberdade na Montanha de Vigilância do Tennessee.
Ouvirei o sino da liberdade em todas as colinas do Mississipi.
Em todas as montanhas, ouviu o sino da liberdade.
E quando isto acontecer, quando nós permitirmos ao sino da liberdade soar, quando nós deixarmos que ecoe em toda moradia e todo vilarejo, em todo estado e em toda cidade; nós poderemos vislumbrar o dia em que todas as crianças de Deus, homens pretos e homens brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, poderão unir mãos e cantar nas palavras do velho spiritual negro:
"Livre afinal, livre afinal.
Agradeço ao Deus todo-poderoso: nós somos livres afinal."
Martin Luther King, 28 de agosto de 1963.
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