A idéia começou no espeto corrido, passou pra pizza, pro pastel, foi promovida ao trânsito e agora chega ao sistema penal com o rodízio dos presos no semi-aberto.
A "sociedade" dita honrada (aqui não contam a sonegação, a esperteza, as infrações de trânsito e os pequenos delitos da malediscência e trapaças pra subir na carreira, os arregos pra arregar um empreguinho em estatal ou um CC e por aí vai...) eriça os cabelos de revolta: Lugar de preso é na cadeia! Se não tem como prender é melhor matar! Há até quem vá além e afirme sem titubear que sente saudades dos esquadrões de morte do tempo da ditadura.
Bela sociedade a nossa: temos um executivo que não executa, um legislativo que não legisla e agora um judiciário que bota bandido de volta nas ruas. É outra roda quadrada.
Mas, gente, vamos usar o bom senso. Olhe bem a foto acima, de Daniel Marenco (a galeria completa pode ser vista aqui). As ruínas acima são o nosso presídio central, onde quase cinco mil infelizes se espremem num espaço projetado para menos de dois mil. Não dá. É pra essa coisa aí que nós gaúchos, os mais esclarecidos, os mais bam-bam-bam os mais mais do Brasil e etc e tal mandamos nossos presos. E aí reclamamos da alta taxa de reincidência.
Essa coisa é muito pior que a Bastilha ou a masmorra de onde o Bento fugiu pra tomar a frente da nossa briosa revolução.
Esse horror acima é uma pá de cal em qualquer intenção de recuperação. Não tem como passar mais de uma semana aí dentro e não ficar revoltado até a medula, querendo pular no pescoço do primeiro desavisado que passar faceiro no ar-condicionado do seu carro importado com assentos de couro legítimo.
Essa aberração vai contra a nossa Constituição. Ah, não? Então veja o que diz o parágrafo 5º:
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;(...)
Tá lá, escrito e assinado por um monte de gente, pra todo mundo ver - inclusive, recomendo sua leitura, até porque por lei ninguém neste país pode alegar em sua defesa o desconhecimento de qualquer lei, quanto mais da Constituição... Enfim, sendo a Constituição um conjunto de princípios hierarquicamente superiores a todas as leis contidas nos códigos civil, comercial, tributário, penal e por aí vai (haja jurista pra aplicar tanta lei neste país), cabe à sociedade (leia-se magistratura) sua interpretação.
Entender que o princípio geral que institui que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante, se sobrepõe à regra específica da execução penal é, pra dizer o mínimo, usar do bom senso; é, de fato, aplicar a Constituição ao pé da letra, como devia sempre ser aplicada.
Resolvida a querela jurídica, chegamos ao xis da questão:
Como chegamos a esse ponto?
Po-li-ti-tica.
Assim mesmo, porque nossos políticos são umas titicas, e como governantes são titicas de elefante. Culpa deles? De jeito nenhum: eles são a cara da sociedade, nos representam em número, gênero e grau.
Ou a Yeda não é a cara do Rio Grande?
Bota a mão na consciência: é sim. Vivemos das aparências, dos preconceitos, da esperteza, de enganar os outros e compensar tudo isso com uma vaidade ufanista devidamente embalados pela pífia e esquizofrênica retórica da superioridade gaúcha. Que superioridade, cara pálida? O Nordeste tá dando de pau na gente há anos! Pra não falar em Minas Gerais: Belo Horizonte é muito mais primeiro mundo que nossa triste, imunda, feia e fedorenta Porto Alegre. (Isso pra nem falar em Curitiba que, quando eu era criança era menor, menos desenvolvida e economicamente menos importante que Pelotas).
Do aforismo do Barão de Itararé, ao que parece, optamos pela locupletação.
Se a gente não olha pra frente, a verdade acaba nos mordendo pela bunda, diz o ditado que acabei de inventar.
E está nos mordendo agora: o Executivo falhou (e vem falhando retumbantemente não de ontem, mas há décadas) em apresentar alternativas eficientes a humanas ao sistema prisional administrado pela Justiça.
É como você guardar o salário no bolso, exigir que sua mulher continue fazendo o rancho do mês e não deixar que ela trabalhe fora. Não tem como botar comida na mesa.
Sem outra alternativa, a Justiça gaúcha botou o bode na sala. E, como era de se esperar, deu a maior gritaria. Pois saiba você que há anos a magistratura vem se defrontando silenciosamente (como é de sua natureza) com esse problema. Há anos juízes e corregedores vêm alertando a sociedade para o estado precário das instituições prisionais, mas o Estado quer privatizar o sistema do mesmo jeito que os yankees fizeram décadas atrás (eles não são bárbaros? São ricos, têm tv a plasma, aquelas casas enormes todas com piscina... Não têm sistema universal de saúde, mas quem se importa?... E Las Vegas? Um luxo! O quê? Você nunca foi a Las Vegas? Nunca visitou Miami ver a Disney? Pf! Seu terceiromundisa!); por isso é que quando bota um tostão é só pra tirar fotografia e dizer que tá fazendo alguma coisa.
Pode esperar: os liberais já andam sondando a opinião pública sobre a privatização do sistema carcerário, daí a ser parido um projeto de lei é só um passo. Porque é isso que liberal faz: no legislativo, emperra qualquer iniciativa de otimização do Estado e faz campanha dizendo que o Estado é um elefante branco, aí chega no governo com propostas de mudança que só servem pra inviabilizar a máquina estatal, vira pra gente e diz: Viu? Tem que privatizar! e aí privatiza. Ou não foi isso que o Brito fez com a CRT? Um pouco mais e lá tinham ido o Banrisul e a CEEE.
Não se engane: a Justiça é atribuição do Estado, de cabo a rabo. A solução não passa pela privatização, mas por uma reformulação do sistema, concentrando na Justiça também a administração dos presídios, com a devida dotação orçamentária (que, por sinal, existe mas não é respeitada pelo Estado).
Se à magistratura cabe administrar as penas, a ela deve caber também a construção, administração e manutenção dos presídios; e não ao Executivo, esse poder circunstancial preocupado tão somente com licitações e nomeações onde e quando haja o benefício de alguma propina ou prospecção de votos.
Aqui eu paro pra coçar atrás das orelhas e do fundo do peito vem o grito:
TÁ TUDO ERRADO, GENTE! VAMOS ACORDAR ENQUANTO É TEMPO!
Uffffff!... suspiro... vamos em frente...
Mas não se preocupe: como a Justiça está relativizando a aplicação das penas, os pequenos delitos em que incorremos em nosso dia-a-dia de bons brasileiros, e os crimes de trânsito que arriscamos cometer dirigindo como dirigimos; estelionatos, corrupção e crimes de lesa-patrimônio em geral vão acabar levando um puxão de orelhas, duas Ave-Marias, um Pai Nosso e você vai estar livre pra fazer tudo de novo.
Ah, porque me ufano deste país...?!
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