6 de mai. de 2013

A MUSA DESNUDA




- Cerveja, tabaco e música - observou - Ei-lo na sua pátria! Vejo que cultiva o estado de espírito nacional, senhor engenheiro. Apraz-me vê-lo no seu elemento natural. Deixe-me também participar do seu estado de harmonia!

Hans Castorp ajeitou-se na cadeira - aliás, já o fizera, assim que avistara o italiano. E disse:

- Mas chega atrasado ao concerto, senhor Settem,brini, já deve estar até a acabar. Não aprecia música?

- Não quando me é imposta - replicou Settembrini. - Não quando obedece ao calendário. Não quando cheira a farmácia e me é ditada de cima por motivos higiênicos. Tenho a minha liberdade em certa conta, ou pelo menos aquele resto de liberdade e de dignidade humana que não nos tiraram. (...) A música? Perguntava-me se me considero um amante da música? Bem, se fala em 'amante' ( o que, na verdade Hans castorp não lembrava de ter dito), tenho de admitir que o termo não é mal escolhido: comporta um laivo de frivolidade afetuosa. Muito bem, serei um amante da música, o que não quer dizer ainda que a preza de forma especial - como prezo e venero a palavra, o suporte do espírito, o instrumento, o arado fulgurante do progresso... a música... a música é o semiarticulado, o dúbio, o irresponsável, o indiferente. Calculo que me vá contrapor que a música pode assumir clareza. Mas também a natureza pode ser clara, um regatozinho pode ser claro - e que significado tem isso para a nossa vida? Não é a verdadeira clareza que está aqui em jogo, mas, sim, uma clareza sonhadora, vazia, que não nos obriga a nada, uma clareza sem consequências e, por isso, perigosa, porque nos induz ao conformismo... Mas imagine que a música assume uma feição magnânima. Pois bem, inflamará o nosso sentimento. Porém, o importante seria inflamar a nossa razão! Dizem que a música representa o próprio movimento - pois eu suspeito nela o estatismo. Deixe-me formular a questão em toda a sua controvérsia: nutro uma aversão política em relação à música.

Ao ouvir este comentário, Hans Castorp não pôde deixar de dar uma palmada no joelho e de exclamar que nunca na vida ouvira ideia semelhante.

- O que não deverá impedir de tomá-la em consideração! - respondeu Settembrini com um sorriso - A música é de um valor inestimável como meio supremo de arrebatamento, como força que nos faz avançar e voar mais alto quando o espírito já se acha preparado para a acolher. Mas a literatura deve tê-la precedido. A música, por si só, não faz o mundo avançar. A música, por si só, é perigosa.* E no seu caso concreto, caro engenheiro, é extremamente perigosa. Apercebi-me disso logo ao chegar, pelos traços do seu rosto.

Cada vez que zapeando pelos canais da TV a cabo me deparo com algum canal "de música", relembro esta passagem do livro A Montanha Mágica, escrito por Thomas Mann, que li há muitos anos atrás.

Pois é nesses canais que a juventude se consome consumindo essa monstruosidade que a indústria do entretenimento ofensivamente comercializa sob o rótulo "música"; como se Rihannas, Beyoncees e Justin Biebers possivelmente guardassem a mais remota semelhança a Brahms, Wagner, Grieg, Saint Saens... ou, para ser menos "elitista", Genesis, Led Zeppelin, Frank Zappa...; ou, pra não ofender os pruridos tupiniquins, Caetano Veloso, Chico Buarque ou Elis Regina.

Esse deplorável espetáculo de contorcionismo e pirotecnias arquitetadas para entorpecer os sentidos de tal forma que passe desapercebido o vácuo avassalador de conteúdo, é a prova cabal da perspicácia do personagem Settembrini.

E olha que esse livro foi escrito em 1924.

A música é, sim, de um valor inestimável como meio supremo de arrebatamento, como força que nos faz avançar e voar mais alto, mas só, e somente só quando o espírito já se acha preparado para a acolher.

Se não temos preparado os espíritos, que outra forma de arrebatamento seria de se esperar?

E não é que os jovens estejam mais burros ou estúpidos: eles carecem de fundamento, de nutrientes básicos para o desenvolvimento da crítica, do pensamento livre, da elaboração própria de conceitos, da visão de mundo que leva a um entendimento mais amplo tanto interno como externo.

O mais trágico é que vagamos entorpecidos e às escuras tendo a nosso alcance dezenas de séculos de criação intelectual, de pensamentos, de observações e conclusões.

Ao invés de lermos Sêneca, Marco Aurélio, Schopenhauer ou Kant, para citar alguns poucos homens de pensamento e visão que dedicaram mais que um pensamento fortuito a questões que ainda hoje nos afligem; consumimos a fast-food da auto-ajuda escrita por autores tão ou mais ignorantes do que nós. Cegos guiando cegos... a questão não é se, mas tão somente quando vamos todos cair desse desfiladeiro.

E vamos. Não tenha dúvidas: nenhuma cultura é eterna e nossa nêmesis já se aproxima. Prova disso é o clima apocalíptico que vem crescendo e dominando o imaginário coletivo.

O mundo não vai acabar tão cedo, pode ficar tranquilo. O que está agonizando à míngua é a cultura ocidental.

Porque decidimos tachar de "elitista", de "embolorado", de "velho" todo o conhecimento acumulado geração após geração ao longo de milênios; substituindo todo esse manancial pela esmola de instantãneos desfocados e mal enquadrados propagados por obscuras "celebridades".

A música, vestida de cultura, é maravilhosa, é fantástica, é uma força poderosa de mudança, de evolução, de exaltação; de plenitude, enfim.

Desnuda, a música é só ruído - que é muito do tudo que se ouve por aí.

* grifo meu

(Foto de Steffen Heilfort: estátua em mármore de Euterpe, "a doadora de prazeres", musa da música - acervo do palácio de Sanssouci, que em francês quer dizer "sem preocupação"; residência de verão de Frederico O Grande em Potsdam, próximo a Berlim)

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