18 de abr. de 2009

A ESTRADA DA VIDA



Escrevia a uma grande amiga hoje pela manhã, e depois de discorrer sobre minha vida veio uma analogia que gostaria de compartilhar aqui, na esperança que seja útil a alguém mais.

Não acredito exatamente em Deus ou qualquer dessas fantasias que a gente usa como muletas pra continuar existindo, mas na vida em si. Mais do que nunca estou convencida que a vida é uma viagem fantástica, e que tudo que a gente precisa fazer é sentar no volante e relaxar, apreciando a paisagem enquanto decide tomar esta ou aquela estrada lateral.

Como todo mundo, ao me ver finalmente livre da monotonia do banco traseiro do carro de meus pais, embarquei numa ferrari e pisei fundo. Mais do que tudo, queria chegar lá - onde quer que fosse; de preferência, na frente de todo mundo. Porque é assim mesmo quando se é jovem: a gente nunca pensa que a via expressa onde ingresamos é só o caminho mais curto para o fim. A gente não vê isso, porque estamos o tempo todo com um olho na estrada e outro no retrovisor, pra evitar que alguém nos ultrapasse. Ignoramos as placas de sinalização e os primeiros desvios laterais. Fazemos manobras perigosas, fechamos outros motoristas e corremos riscos impensáveis, acenando e buzinando nossas "conquistas" para nossos pais e alguns amigos a quem avistamos vez por outra seguindo em marcha lenta por uma estradinha viscinal, ou (mais no caso dos amigos) disputando rachas por aí. Vez por outra, alguém abre a janela e grita alguma coisa com os olhos arregalados, mas não escutamos, porque o som de 100W está a toda, tocando System of a Down.

Pra maioria de nós, meros mortais, tal correria invariavelmente acaba em acidente. Ou batemos de frente em alguém, ou simplesmente perdemos o controle na saída de uma curva e...

SQUIIIIIIIICHHHHHHH.... CATABUM! CRICS! CROCS! CRÁS!

Estonteados, nos arrastamos pra fora das ferragens e olhamos atônitos o estado miserável daquele nosso carrinho tão bonitinho e no qual havíamos investido anos de fantasias e expectativas. Nos encolhemos e choramos: é o fim!

Muita gente já fica ali mesmo, chorando o primeiro carrinho destruído e invejando os carros que passam como bólidos até se esvair. Alguns já piram ali mesmo, e seguem a pé, com medo de voltar a dirigir. Com o tempo, acabam como andarilhos esfarrapados mendigando à beira da estrada.

No entanto, se tivemos a sorte de nossos pais ou amigos estarem atentos, logo estarão parando no acostamento e nos dando uma caroninha até a próxima concessionária. Humilhados, nos resignamos a ocupar o banco traseiro do carro de alguém, nos sujeitando ainda de quebra aos conselhos, lições de moral e a todos os "eu te disse" a que fizemos juz. A certa altura eles retomam o assunto que vinham discutindo antes de nos socorrer, e entediados com a paisagem começamos a devanear sobre o próximo carrinho, imaginando o modelo, a cor e os acessórios com que vamos nos equipar. Eventualmente, nos deparamos com uma concessionária.

Aí vem o segundo desafio: agradecemos a carona e nos aventuramos outra vez? Muita gente desiste já a meio caminho entre o carro espatifado e a concessionária, particularmente se está no carro do papai: o banco traseiro é um velho conhecido, papai dirige sem sobressaltos e mamãe garante que nunca falte nada pro nosso conforto... ficar pra sempre ali é muito tentador.

Com maior ou menor relutância, dependendo da natureza de cada um; acabamos descendo do carro, agradecendo a carona e tratando de escolher um novo modelo. Dependendo da natureza de cada um, até pedimos que nossos pais ou amigos ajudem na escolha.

Finalmente, com maior ou menor hesitação, escolhemos o modelo e sentamos atrás do volante.

Partimos com cautela (até usamos o pisca!), e aos poucos vamos vencendo o medo e reconquistando a confiança em nossa direção. Nossos pais ou amigos seguem atentos, mas à medida que vamos ficando mais e mais confiantes, vamos nos afastando.

Alguns de nós já aprenderam a lição, e seguem em velocidade de cruzeiro reparando na paisagem, obedecendo às placas e se aventurando por vias laterais sem outro propósito que explorar e, com sorte, ir dar numa paisagem paradisíaca e mergulhar nas águas cristalinas de alguma cachoeira.

Às vezes a estrada acaba num atoleiro ou num deserto sem fim. Aí acontece de tudo: há quem fique atolado, acelerando e se atolando cada vez mais, há quem desça e desista. duvidando de sua capacidade de discernimento, e fique ali sozinho no meio do nada se recriminando até se esvair; e há ainda quem trate o assunto com pragmatismo: desatolar, dar marcha-à-ré e retomar o curso da sua vida.

Mas, voltando ao fio da meada, há os que (como eu) não cogitaram deixar a via expressa, voltando a acelerar e querendo passar todo mundo pra chegar logo ao fim, ignorando outra vez as placas de sinalização e os acenos urgentes de seus pais e amigos. Como era de se esperar...

SQUIIIIIIIICHHHHHHH.... CATABUM! CRICS! CROCS! CRÁS!

Lá vamos nós outra vez! Poucas coisas dóem mais que a reincidência. E o pior é que tínhamos investido tanto naquele carrinho! Tínhamos escolhido cuidadosamente o modelo, a cor, os acessórios, e até havíamos cuidado da segurança equipando com airbag e freios ABS!

Outra vez nos defrontamos com as opções: pegar carona, seguir a pé ou ficar ali chorando o leite derramado. Nossos pais e amigos se mostram relutantes: "Mas... De novo?! O que foi que eu falei?!", exclamam desacelerando mas sem parar. Do acostamento, roxos de vergonha e humilhação, gritamos que estamos bem, que está tudo sob contrle - melhor ficar sozinho que passar outra vez por todas aquelas admoestações. E eles seguem em frente. Eventualmente, um estranho pára e pergunta nos oferece uma carona.

É o terceiro desafio.

Embarcamos felizes a princípio. Ajeitamos o cinto de segurança e sorrimos fazendo juras de amor e gratidão eternas ao nosso salvador; e o carro arranca (às vezes o solavanco já vem aí, mas condescendemos, aliviados demais pra sequer dar sinal que aquilo nos incomodou). Com sorte, a pessoa que nos deu carona começa a nos consultar sobre o caminho depois de alguns quilômetros, nos dando o posto de navegador até sugerir, a certa altura, que nos alternemos no volante, e num consenso quanto ao rumo e à velocidade, seguimos viagem em harmonia até o fim da estrada.

Mas essa não é a regra. A disposição do outro em nos passar o volante depende do quanto investiu naquele carro. Afinal, quem é que não sente um arrepio na espinha ao ver outra pessoa arranhar as marchas no carrinho em que investiu anos, talvez décadas de fantasias e expectativas? A pessoa que nos acolheu ainda traz bem nítida a lembrança da lataria espinafrada do nosso carrinho na beira da estrada.

Dependendo do outro motorista e da nossa natureza, a viagem segue na boa por alguns ou muitos quilômetros; mas invariavelmente, a certa altura começamos a nos sentir incomodados ou com a maneira como o outro dirige, ou com os caminhos por que nos arrasta sem consultar, e começam as discussões.

Chegamos ao quarto desafio: seguir no banco do passageiro de alguém botando nessa pessoa toda a responsabilidade (e culpa) por nosso destino ou se despedir ali, agradecer a carona e seguir sozinho a pé até a concessionária mais próxima?

Numa situação ideal, se estabelece uma trégua até encontrar uma concessionária onde podemos adquirir nosso próximo carro e seguir viagem depois de nos depedirmos amistosamente.

Mas entre meros humanos há três opções:

1 - seguimos calados e cheios de ressentimentos, nos envenenando por dentro até ou saltar do carro em movimento e nos estropiar todos no asfalto, ou simplesmente murchar em depressão;

2 - maldosamente tratamos de garantir que a viagem seja um inferno pro outro também;

Ou,

3 - Tentamos tomar o volante à força, e dá-lhe soco e ponta-pé até...

SQUIIIIIIIICHHHHHHH.... CATABUM! CRICS! CROCS! CRÁS!

Lá jaz outro carrinho desmilinguido numa vala ou abraçado num poste.

E cá estamos nós outra vez lambendo feridas no acostamento, enquanto os outros passam velozes e sorridentes em seus modelos de luxo. Voltamos à estaca zero.

Chegamos ao quinto desafio.

A essa altura, o ideal seria tirar os olhos dos destroços, contemplar a beleza da paisagem ao nosso redor e nos conscientizar que não é o carro, não é a estrada, mas a viagem em si que realmente importa.

Se a pessoa que está logo ali tão quebrada e estropiada como nós acordar pra essa verdade, a chance é que ainda poderemos nos dar as mãos e seguir juntos até a próxima concessionária, aproveitando a caminhada pra resgatar algumas coisas na relação e juntos traçarmos planos pro nosso próximo carrinho e sobre como vamos prosseguir viagem.

Muitas vezes não acontece assim, e precisamos seguir sozinhos.

O sexto desafio é não repetir o mesmo erro, saltando precipitadamente no primeiro carro que páre oferecendo carona pra só ir conhecer o motorista quilômetros depois; ou simplesmente nos deixando ficar à beira da estrada indefinidamente. O ideal é chegarmos por nossas próprias pernas até a concessionária, escolhermos nosso próprio veículo e seguirmos viagem apreciando a paisagem, abertos à possibilidade de outro motorista nos fazer companhia pelo quanto dure o respeito e apreciação mútuos.

Sigo a vida na minha fusqueta, sem acelerar muito e literalmente devorando a paisagem ao meu redor. Meu amor segue no carrinho dele. Às vezes um pouco adiante, às vezes um pouco atrás.

Por ora, seguimos na mesma estrada, compartilhando nossas impressões da viagem. Quando um vira, o outro segue pra experimentar e até agora não temos muito que reclamar um do outro - sempre tem aquele buraquinho que o outro podia ter avisado, ou aquela reta onde acelerou demais quase sumindo na distância, ou mesmo aquele desvio que tomou e foi parar lá em cima do morro, numa estrada paralela quase saindo de vista; mas isso faz parte da viagem: seria monótono seguirmos sempre lado a lado, na mesma marcha, abanando um para o outro e esquecidos de olhar ao redor.

Um dia esta estrada chega ao fim. Quando esse dia chegar, vou desligar o motor, descer da minha fusqueta e fazer um bom alongamento... Ufa! Que viagem!

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