- Ela é... diferente... – o tom de voz da professora baixou para quase um sussurro enquanto as sobrancelhas perfeitamente delineadas a lápis se arqueavam sobre os olhos castanhos.
A palavra soou deslocada para mim. Aos 8 anos, entendia como diferentes um quadrado e um círculo, um cachorro e um gato, um carro e uma carroça. Isso, no entanto, não se aplicava a pessoas: em casa, na missa e até mesmo na escola fui ensinada que todas as pessoas são iguais sem excessão de sexo, cor, idade ou preferências políticas, esportivas ou sexuais.
- Somos todos iguais aos olhos de Deus. – repetia o padre nos sermões de domingo.
E eu acreditava piamente, sem excessões: dos amiginhos da rua aos ciganos, lixeiros, empregadas, carteiros, sorveteiros, amigos de meus pais... todos eram iguais.
Mas quis a professora que V fosse... diferente.
É claro que todos tínhamos há dias reparado que ela era magrinha como um fio de arame, que tinha um gênio danado e uma perna ligeiramente mais curta que a outra.
Mas, diabos... A A não era gordinha? O J não era certinho demais, quase batendo continência cada vez que era chamado? O B não era fedorento? E o que dizer do P, que vivia dando pum? Olhando um pouquinho mais de perto, todos nós éramos diferentes.
Lembro que passei o resto da aula olhando ao redor, descobrindo as peculiaridades de cada um: flagrei o C tirando meleca do nariz, olhando sorrateiramento ao redor e grudando embaixo da classe; a H fez xixi de novo nas calças (ela não tinha um rim, e esses acidentes viviam acontecendo); e a C gaguejava como a DKW da minha mãe ladeira acima...
Mas a V sentava bem retinha sempre na primeira fila, atenta, rápida e precisa levantando a mão ainda antes que a professora acabasse de perguntar enquanto o resto da classe se encolhia e olhava pros lados fazendo de conta que não estava nem ali.
Honestamente, se a V era diferente, pra mim é só porque era mais esperta que a maioria de nós.
Mas assim não pensava o resto da turma. Na verdade, acho que ninguém mais pensou no caso: simplesmente seguiram no pé da letra o que dissera a professora.
E faziam concessões.
Se a V beliscava, ninguém reclamava:
- Ela é... diferente.
Se a V furava a fila, ninguém falava:
- Ela é... diferente.
Se a V xingava, ninguém retrucava:
- Ela é... diferente.
O tempo foi passando, até a fatídica tarde em que nossos caminhos se cruzaram numa mesa de ping-pong.
- Xiripa! – gritei vitoriosa.
- Não foi! – protestou V não querendo admitir a derrota.
- Foi, sim! – insisti.
- Não foi, não, sua mentirosa! – os dentes branquinhos rosnaram pra mim.
- Retira!
- Não retiro, não: mentirosa! Mentirosa! Mentirosa!
A expressão é “deu um branco”, mas pra mim foi vermelho. E esse vermelho só se dissipou ao ver o fio da mesma cor que começava a correr pelo nariz da V, espremida no chão sob meus joelhos.
Foi uma surra e tanto.
Mas não foi na V que eu bati.
Hoje, passados quase 40 anos sei que naquela tarde, no pátio da escola essa menininha de 8 anos deu uma uma bela surra no preconceito que cria aleijões morais e emocionais; na perversão do culto à perfeição física; na hipocrisia do asco sublimado em pena que encapsula em redomas de isolamento e alienação social, condenando ao ostracismo indivíduos plenamente hábeis e capazes de compensar criativa e positivamente as limitações impostas por uma fatalidade, silenciando em cuidados seu direito primordial à igualdade.
No mais, peço desculpas à V pela surra.
Eu devia ter batido na professora.
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