21 de mai. de 2009

A RODA QUADRADA


- O trânsito está impossível!

Das gigantescas off-roads 4x4 (será que alguém precisa um 4x4 pra rodar no asfalto?) aos pequeninos Corsas, passando pelas lotações e coletivos a opinião é unânime: o trânsito em Porto Alegre está de enlouquecer e, como sempre, o problema são os outros. Porque são sempre os outros, né? Nunca somos nós, mesmo quando ligamos o carro de manhã cedo e nos torturamos no engarrafamento pra deixar o carro o dia inteirinho mofando num estacionamento (pago) enquanto nos enlatamos num escritório pra trabalhar... Mas, ai, andar de ônibus é capitis diminutio.

Minha rua é um bom exemplo: a imensa maioria dos carros que estacionam em ambos os lados da rua chegam pela manhã e saem ao final da tarde. O resto do dia passam ali, paradinhos, ocupando espaço. E isso que estamos a menos de 100 metros de uma das principais artérias de Porto Alegre, provida por dezenas de linhas de coletivos e lotações oriundos dos mais diversos pontos da cidade, passando com uma frequência média de 5 minutos, e a mais ou menos 400 perimetral que une a zona sul à BR 116, com suas respectivas linhas de ônibus - se não tem mais, é porque ninguém cobra, ninguém quer.

Autoridades e especialistas arrancam os cabelos tentando fazer girar essa roda quadrada.

Vai fazer o que, alargar ainda mais as vias? Praticamente o que tinha pra alargar já foi alargado. Mais que isso, e os carros estarão passando por dentro de prédios e apartamentos - não cito as casas, porque são uma espécie em extinção.

E é assim mesmo: quanto mais se abrem novas vias e se alargam as existentes; quanto mais se constroem túneis e viadutos, mais carros passam a circular. Só em 2008, a frota de veículos particulares rodando pelas ruas de Porto Alegre aumentou 30%. As perspectivas são sombrias: em menos de 10 anos se estima que o trânsito nesta cidade vai simplesmente parar.

Culpa das autoridades? Culpa da indústria automobilística? Que nada!

A culpa é nossa mesmo: é a nossa burrice, o nosso imediatismo e o nosso deslumbramento infantil com qualquer coisa que tenha um motor e quatro rodas. Tamanho é esse deslumbramento que nas ruas o ditado é diga-me com o que rodas e eu te direi quem és.

A tal ponto vai esse delírio que tem gente, e não são poucos, que economiza na saúde, na comida e até na educação dos filhos pra pagar as prestações do carrão. Duvida? Como é que aquele cara morando naquele muquifo sai todo o dia de manhã cedo naquele carrão encerado até nas rodas?

É nas ruas, entre a escravidão do emprego mal remunerado e sujeito às mudanças de humor do chefe-feitor e a mesmice do casamento xôxo e superficial tocado de barriga por conveniência que o nosso "herói" vira batman e pisa fundo pra viver sua fantasia de sucesso social.

Essa equação não isenta em absoluto as mulheres, que usam o carro como expressão de moda. A moda agora são as grandes camionetes e Deus nos acuda, porque nós mulheres - apesar de toda a gritaria das feministas - dirigimos como mulheres: nós temos um handicap genético na visão espacial: somos péssimas em avaliar distâncias quando paradas e piores ainda pra calcular tempos de intervalo entre veículos em movimento.

Não acha?

Já reparou que ao chegarem num cruzamento as mulheres tendem a parar, olhar os carros avançando e arrancar no último instante, forçando os carros que se deslocam pela via a frear e diminuir a marcha?

O caos do trânsito é feito por nós, não pelos políticos e administradores públicos.

Enquanto objetos como automóveis forem vistos como panacéias pras nossas mazelas, revestidos com uma carga emocional que mascara sua natureza meramente utilitária; o trânsito vai continuar se complicando exponencialmente.

Isso acontece porque enquanto os técnicos raciocinam em termos do espaço físico ocupado pelos veículos nas ruas da cidade; no dia-a-dia essas ruas projetadas cientificamente têm que acomodar também o espaço inviolável ocupado pelos veículos, que obedece a uma lógica absolutamente alheia aos conceitos da engenharia de tráfego, a lógica emocional.

Não concorda?

Pois já está cientificamente provado, por exemplo, que pessoas ao volante de carros de luxo se mostram menos propensas a dar preferência e mesmo respeitar as leis de trânsito.

Já viu algum Mercedes rodando pacientemente atrás de uma fusqueta ladeira acima? Eu não. O que vejo sem excessões é a Mercedes acelerar e forçar a ultrapassagem de qualquer jeito.

Mas os carros de passeio mais acessíveis não estão livres dessa maldição, afinal o "valor" do carro é sempre o resultado do investimento financeiro potencializado pelo investimento emocional - o quanto ansiamos por aquele objeto, o quão criteriosamente o escolhemos, os sacrifícios que fizemos para adquirí-lo, as frustrações e ansiedades que sublimammos, as ilusões de sucesso e ascenção social que fantasiamos e por aí vai...

Houve um tempo em que eu sentia o carro do mesmo jeito que a maioria das pessoas. Tive meu breaking point uma noite voltando da rodoviária depois de dar uma carona à minha prima. Na subida da Garibaldi um taxista me fechou de um jeito que eu quase subi no meio-fio (e olha que é uma subida e tanto!). O sangue ferveu. Meti uma primeira e arranquei fritando os pneus. Emparelhei com o dito na Independência, na altura da esquina da Santo Antônio e devolvi o obséquio. Aí foi a vez dele ficar louco da vida e seguimos num zigue-zague kamikaze em alta velocidade pela Mostardeiro - por sorte eram 11 e meia de uma noite de inverno e o trãnsito era quase zero. Pra dar uma idéia da velocidade que seguíamos, ao chegar na lomba da Mostardeiro (aquela do friozinho na barriga) meu carro voou literalmente, indo aterrisar quase na entrada do estacionamento do parcão, espalhando fagulhas pelo ar quando a descarga tocou o chão. Quando freamos na sinaleira da Goethe, meu coração devia estar a mais de 240 por minuto. Nos olhamos como gladiadores inimigos de morte e aí eu sorri e acenei, arrancando quando o sinal virou para o verde. Segui pela Mostardeiro e ele foi na direção da Dr. Timóteo.

Foi naquele aceno que eu soube que isso nunca mais aconteceria. Daquele dia em diante, sempre que alguém força uma entrada à minha frente, tiro o pé do acelerador e deixo: não nasci pra ser a Nêmesis de ninguém.

Mas aquele episódio me fez parar e pensar.

Por quê?

Sou em geral uma pessoa razoavelmente calma e racional, pelo menos para nós latinos. Já então tinha por hábito respeitar as passagens de pedestres, reduzir em frente às escolas e tudo o mais que um bom motorista deve fazer. Me considerava uma boa motorista e, igualmente, uma boa cidadã votante, pagadora de impostos e tudo o mais. De onde então veio aquela súbita explosão da mais absoluta irracionalidade, aquele comportamento bestial, aquele rompante de pura psicose?

Na época, eu passava por uma fase difícil com problemas financeiros e familiares, receita certa pra uma explosão de agressividade. Ainda assim, se o sujeito tivesse pisado no meu pé na rua, eu não teria reagido com um chute; ele pediria desculpas, eu aceitaria e nos despediríamos desejando uma boa noite. A explosão veio do carro - na época um flamejante Passat preto 1.8 com cara de mau e som de 100W da Bosch, o "batmóvel" que eu dirigia com orgulho arrancando olhares invejosos de outros motoristas e elogios e propostas de compra em todo o posto onde parava pra abastecer. Aquela atenção e, porque não dizer respeito, servia como amortecedor pra boa parte da minha angústia existencial, o que ampliava consideravelmente o "espaço inviolável" que meu carro devia ocupar nas ruas.

Quando rebaixados a meros pedestres, temos um espaço de mais ou menos 50cm ao nosso redor que consideramos o "nosso" espaço. Só nossos amigos, amores e conhecidos têm permissão pra violar esse espaço.

Usamos o mesmo princípio para determinar o "espaço inviolável" de nossos veículos, mas aplicando uma fórmula muito mais complexa, que resulta da proporção entre o investimento financeiro e emocional que fizemos no veículo à razão exponencial de nosso estado emocional do momento.

Naquela noite especificamente, meu "batmóvel" tinha um raio de mais ou menos 10 ou 20 metros. Era minha "conquista", o "carrão" tão ansiado que eu dirigia com orgulho por aí com o som a mil. Além disso, era uma noite fria, em que eu me vira forçada a sair no meio de um bate-boca doméstico porque já tinha me comprometido a levar minha prima à rodoviária. Desta forma, cada centímetro avançado por aquele taxista dentro do meu espaço inviolável foi sentido como uma agressão física. O empurrão para o meio-fio a menos de 40cm de distãncia do meu pára-choques foi sentido como uma violenta (e gratuita) bofetada na cara.

E eu reagi proporcional e irracionalmente.

O mesmo se aplica quase que invariavelmente a qualquer motorista à solta pelas ruas, e não importa muito se o carro é do último modelo ou uma fubeca caindo aos pedaços: é o investimento emocional, a necessidade de afirmação social somados às nossas angústias e frustrações cotidianas que determinam desde a opção de usarmos o carro como veículo principal de transporte mesmo para deixá-lo mofando o dia inteiro em um estacionamento pago até o raio de "espaço inviolável" que atribuímos aos nossos veículos e que determina nossa maior ou menor propensão a dirigirmos como psicopatas.

É o fatídico "elemento humano" e é por isso que o trânsito nas cidades é uma roda quadrada. O único caminho para um trânsito racional e seguro passa por um amadurecimento emocional da sociedade e uma reformulação de valores que estamos a anos-luz de atingir.

Portanto, meu amigo, se prepare porque a coisa só vai seguir de mal a pior.

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