27 de nov. de 2012

YO, DJ!


Sabe aqueles dias que você acorda precisando chutar um balde?

Pois é, acontece comigo, e com frequência. Foi num dia desses que comecei a burilar essa perolazinha sonora aí. Foi assim:

Acordei de manhã cedo, cheia de amor pra dar, fui fazer o café, liguei o rádio e... TERROR!!! A empregada tinha esquecido de sintonizar de volta na minha estação preferida (99% notícias).

Passado o susto, ainda sentindo a agressão nos tímpanos, resolvi dar uma zapeada pra ver o que anda tocando por aí.

E eu que pensava que nada podia ser pior que televisão...

Como a gente só se recupera dos traumas com uma boa terapia, armada de uma garrafa de café comecei a dar forma a esse libelo. Como não queria que fosse mais um ranço elitista, virou essa belezinha aí.

Espero que vocês curtam, entendam a piada e se divirtam como eu estou me divertindo até agora!

25 de nov. de 2012

ESTOU MELHOR EM CASA




Mais um verão se aproxima. Com ele vêm as festas de final de ano e, é claro, as viagens de férias.

Ontem falando com uma conhecida aqui na praça eu disse que não gostava de viajar. Ela me olhou como se eu fosse verde e tivesse antenas.

Bom, admito que exagerei um pouco: eu gosto de conhecer lugares, pessoas e culturas diferentes, o que eu odeio é a parte do "transporte e acomodações".

Senão, vejamos:

Transporte por via terrestre pelas estradas do Brasil, vamos combinar, já devia ser considerado "tentativa de suicídio assistido".

Imagine um cardume com 400 mil peixes de vários tamanhos: lambaris, carás, traíras, dourados, cações, golfinhos e baleias (tá bom, tá bom: golfinhos e baleias não são peixes, mas é só um exemplo, ok?). No meio disso tudo, você um lambari. Agora pegue essa peixarada toda e bote pra nadar junta num riachinho projetado para acomodar três traíras lado a lado, num fluxo de coisa de 60 traíras por minuto e que se estende por uma centena de quilômetros (que é a parte que recebe mais fluxo da freeway). O que acontece?

Quase metade desse cardume é composta de lambaris e carás como eu e você nadando alegremente dentro do limite de velocidade e determinados a chegar ao nosso destino sem sofrer um ataque de apoplexia.

Mas aí vêm as traíras grudando nas nossas nadadeiras e piscando faróis alucinadamente como se fossem o Fernando Alonso a quatro pontos do Sebastian Vettel na última corrida da temporada. Não raro, são seguidos pelos cações ziguezagueando pelas faixas em rachas ensandecidos.

E tem as baleias e golfinhos que conforme o humor do momento podem mostrar-se gentis e cuidadosos ou aniquilar você numa fração de segundo. Ah, é, eles também podem se distrair por uma fração de segundo e sua vida de lambari já era.

E tudo isso pra se acotovelar numa praia apinhada fedendo a cerveja, fritura, milho cozido e bronzeador, levar umas vinte quilhas de prancha de surfe pela testa e passar as noites em claro por conta do ruidoso vai-e--vem das selvagens tribos adolescentes órfãs de pais, mães e inteligência, perambulando pela noite até depois do amanhecer, indo a todos os lugares sem chegar a lugar algum.

Mas tem a opção do transporte aéreo, com uma oferta de destinos mais "sofisticados" - infelizmente a coisa meio que pára por aí, já que os "modais" (ai, que palavra chique!) aquático e ferroviário não são considerados "economicamente viáveis".

O périplo começa já no aeroporto - esse curral chique onde o gado comparece vestido com roupas de festa.

Primeiro, exigem que você se apresente algo entre uma ou duas horas antes para fazer o tal check-in, que é uma das coisas mais idiotas de que já ouvi falar, afinal, você já teve a iniciativa de comprar e pagar pela passagem, só precisa mesmo despachar as malas, se as tem: é claro que pretende pegar aquele voo, daquela companhia, naquele portão e na hora marcada, e, pelo bom senso, a moça não precisaria imprimir ainda outro bilhete de passagem, bastava entregar um ticket com o numero da sua bagagem. Mas não, como um penitente, é preciso que prove à sua santidade a companhia aérea que está firme em sua vontade desperdiçando horas numa fila interminável para receber a bênção da mocinha no balcão. E nada de perder as estribeiras nessas horas, senão você corre o risco de ser tratado como "passageiro hostil".

Mas, espere, ainda não está liberado para seguir viagem. Para garantir que não representa uma ameaça à segurança mundial, você precisa ser vistoriado, inspecionado, apalpado e liberado para o tíutlo provisório de "passageiro", que lhe confere o direito de calar a boca e esperar (sentar depende da disponibilidade de assentos na sala de embarque) até que o conduzam por um brete estreito ventre do frangalhão onde será devidamente estocado num compartimento de cerca de 80cm² onde de bico sempre fechado deve esperar "até a parada total desta aeronave".

Com sorte, horas depois de ter desistido de ir ao banheiro porque não consegue desgrudar o corpo do "passageiro" ao seu lado, recebe de prêmio um copo de refrigerante ou suco choco e uma barrinha de cereais que só vão servir para secar ainda mais a boca e fazer sua bexiga quase explodir de vez.

Você só vai voltar a saber o que é "respirar a plenos pulmões" quando, depois de muita dificuldade e pedidos de desculpas, finalmente conseguir desgrudar dos corpos dos demais "passageiros", e surpreso por ainda poder mexer as pernas, seguir por outro brete estreito até o saguão onde deverá (outra vez) esperar rezando dois Pai Nosso e três Ave Maria para que sua mala não tenha sido roubada.

Com sorte, depois desse périplo, tudo que o espera é o abraço caloroso de amigos e familiares e alguns dias realmente felizes e agradáveis em sua companhia.

Mas se o destino é um desses lugares que "todo mundo tem que conhecer" como, digamos, Paris, aí tem outra rosca.

Se usou o serviço de uma agência de turismo ou fez reserva antecipadamente, você desce do bendito avião, caminha quilômetros até um ponto de táxi, paga os olhos da cara, e depois de muitas voltas (e você jurando que já viu aquela esquina umas trocentas vezes) chega ao "aconchegante" hotelzinho onde tem reserva.

Se não fez reserva, e não se aventura a dormir numa praça ou embaixo de uma ponte, pode ir ficando no aeroporto mesmo: os hotéis estão SEMPRE lotados.

Mas digamos que fez, e com meses de antecedência. Isso não faz a menor diferença: o azedume em pessoa ergue as sobrancelhas quando você se aproxima da recepção do hotelzinho de três estrelas, estende uma ficha e um punhado de chaves, anunciando: le petit-déjeuner est servi à partir de sept à neuf heures et la salle de bain est dans le couloir - sim, é um banheiro por andar.

Isso foi uma boa acolhida: daqui para a frente, prepare-se para ser xingado (en français), desdenhado (en français), pisoteado (en français), empurrado (en français), ignorado (en français)enganado (en français) e roubado (en français), e não importa se o cara é argelino, marroquino, iraquiano ou francês mesmo - ils parlent tous français.

E é levado (toujour en français) a entrar na fila pra visitar todos os lugares onde todo o turista vai  para ser xingado (en français), desdenhado (en français), pisoteado (en français)empurrado (en français), ignorado (en français)enganado (en français) e roubado (en français).

Falei de Paris, mas podia ser Roma, Miami, Londres ou qualquer outro "destino" à sua escolha. Há exceções para confirmar a regra: em Tóquio e Nova Iorque você não precisa se preocupar muito em ser xingado, pisoteado, empurrado, enganado e roubado (desde que não pegue o metrô): lá todo mundo simplesmente se ignora.

A isso tudo, prefiro ficar em casa e viajar na música, nos livros e nos filmes que me dão muito, mas muito mais prazer.

(foto: fila de turistas em Versailles, por Anna Strumillo)

22 de nov. de 2012

A LISTA DE MENDES




Mendes nasceu Aristides. Mais precisamente, Aristides de Sousa Mendes do Amaral e Abranches, em Cabanas de Viriato, Distrito de Viseu, Portugal.

Por parte de mãe, era bisneto por bastardia do 2º Visconde de Midões e descendente do 2º Conde de Avranches. Por parte do pai, o lado Sousa da família, era de origem judaica, descendente de Madragana Ben-Bekar, uma linhagem que remete direto, sem escalas, ao Rei Davi de Israel. Além disso,  de Madragana sabe-se ter tido filhos com El-Rei D. Afonso III, mas isso é outra história, pois não consta que Aristides provenha desse ramo da família.

Aristides nasceu com um irmão gêmeo idêntico de nome César. Muito unidos, os irmãos cursaram Direito em Coimbra e seguiram a carreira diplomática.

Aos 24 anos, contraiu núpcias com Angelina Amaral de Abranches, prima em segundo grau e no ano  seguinte, 1910, é nomeado para o consulado de Demerara, na Guiana Britânica. Entre 1911 e 1926, foi cônsul portugues em Zanzibar (Tanzânia), Curitiba, São Francisco (EUA) e São Luís do Maranhão (alternando com Porto Alegre). Em 1926 assume a Direção Geral dos Assuntos Comerciais e Diplomáticos em Lisboa. Segue-se a revolução e ele é demitido por ser monarquista. Reintegrado em 1927, segue para Vigo, na Espanha. Em 1929 é nomeado para a Antuérpia, com acreditação para Luxemburgo. Fixa residência em Leuven, na Bélgica.

Nesse período, uma tragédia familiar, mais precisamente no ano de 1934: primeiro o segundo filho mais velho morre logo após a colação de grau na Escola Diplomática. Seis meses depois, a menina mais jovem morre aos 17 meses.

Em 1938, o presidente António de Oliveira Salazar o nomeia para o consulado de Bordeaux, na França, com jurisdição sobre os sub-consulados de Bayonne e Hendaye.

Em 1939, como se sabe, a Alemanha invade a Polônia. Inglaterra e França declaram guerra ao regime nazista. Vendo a guerra aproximar-se, Aristides envia os filhos menores de volta para Portugal.

Nesse mesmo ano, em novembro, o ditador António de Oliveira Salzar emite a Circular 14, que determina entre outras coisas que os cônsules de carreira não poderão conceder vistos consulares sem prévia consulta ao Ministério aos estrangeiros de nacionalidade indefinida, contestada ou em litígio, aos apátridas, aos portadores de passaportes Nansen e aos russos; (...) àqueles que apresentem nos seus passaportes a declaração ou qualquer sinal de não poderem regressar livremente ao país de onde provêm; aos judeus expulsos dos países da sua nacionalidade ou daqueles de onde provêm.

Por que o faz?

Toda a guerra provoca uma onda de impacto que empurra populações afetadas em correntes migratórias para todas as direções possíveis. Com a Alemanha e a Áustria no centro da Europa, tendo a leste a Rússia de Stálin, as rotas de fuga apontavam para o Oeste. O avanço nazista nunca pretendeu ser meramente um movimento de ocupação. Seu objetivo era o extermínio sistemático, a erradicação de toda e qualquer etnia ou grupo que não se encaixasse perfeitamente no modelo ideal de uma raça "puramente ariana". Era portanto imperativo aos nazistas bloquear essas correntes, preferencialmente em currais onde o extermínio fosse mais eficaz.

Da Espanha, o "generalissimo" Franco, que recebera apoio dos nazistas durante a Guerra Civil Espanhola de 1936 a 1939, responde prontamente proibindo a emissão de vistos para refugiados ao mesmo tempo que hipocritamente adotava uma posição de neutralidade no conflito.

Sabendo da delicada posição diplomática de Portugal, cujo presidente e também ditador Salazar ao mesmo tempo que simpatizava com o regime nazista adotara uma posição de neutralidade por força da mais antiga aliança diplomática de que se tem registro na História, o Tratado de Windsor, datado de 1373 e renovado em 1642 e 1703; e muito provavelmente buscando colocar os lusos numa posição de fragilidade perante os nazistas, o que lhe facilitaria a assimilação do território português num possível futuro III Reich; Franco permitia a passagem de refugiados por seu território, se portadores de um visto português.

Restava a Portugal agradar a gregos e troianos ou, mais provavelmente, desagradar a todos.

Findo o rigoroso inverno de 1939-40, os alemães retomam a ofensiva, ocupando Holanda, Bélgica e Luxemburgo em maio. Em junho chegam a Paris. Pétain estabelece um governo da resistência em Vichy, seguido por centenas de milhares de refugiados franceses e de várias nacionalidades que haviam fugido para a França. O avanço das tropas nazistas os empurra para mais adiante, para Bordeaux.

E é justamente em Bordeaux que se encontra Aristides, num prédio praticamente sitiado por refugiados implorando por um visto português. A cada audiência, em obediência à Circular 14, Aristides envia um telegrama para Lisboa. Mas nunca recebe uma resposta: o governo português está visivelmente ganhando tempo, contando com a chegada dos nazistas para que o "problema" seja arrancado de suas mãos.

É quando Aristides perde a paciência. Judeu marrano, o descendente de Madragana Ben-Bekar, aquela que teve filhos com El-Rei D. Afonso III vai à janela do consulado e anuncia em alto e bom som:

"A partir de agora, darei vistos a toda a gente: já não há nacionalidades, raça ou religião".

Nos dias que se seguem, o consulado trabalha das oito da manhã até as três da madrugada expedindo vistos. Quando acabam os formulários, Aristides passa a usar folhas de papel em branco onde carimba o selo do governo português.

Os nazistas continuam seu avanço, forçando Aristides a relocar-se primeiro em Bayonne, e finalmente em Hendaye já na fronteira com a Espanha. Tendo esgotado os formulários nas três sedes sob sua jurisdição, Aristides passou a escrever de próprio punho:

O Governo Português pede ao Governo Espanhol que autorize o portador do presente visto a atravessar livremente o território espanhol. Esta pessoa é uma refugiada do teatro de operações europeu em trânsito para Portugal.

Chamado de volta a Portugal por emissão excessiva de vistos, Aristides cruzou a fronteira liderando uma épica caravana de refugiados, muitos dos quais acabaram abrigados na propriedade da família, em Viseu.

Julgado em Lisboa, foi condenado por ter

(...) desonrado Portugal perante as autoridades espanholas e as forças alemãs de ocupação (...) e por ter ousado colocar os seus próprios imperativos de consciência à frente das suas obrigações de funcionário.

Aristides morreu pobre e desonrado num hospital de caridade da Ordem Terceira de Lisboa. Sua mortalha foi um hábito de burel dos franciscanos.

Em 14 de outubro de 1967, a Yad Vashem, organização israelita para a recordação dos mártires e heróis do Holocausto homenageia Aristides com a sua mais alta distinção: a medalha de ouro dos Justos das Nações, onde se lê a inscrição do Talmude "Quem salva uma vida humana é como se salvasse um mundo inteiro.

A censura salazarista impede que a notícia seja divulgada em solo português. O nome de Aristides só virá a ser mencionado na imprensa daquele país depois da Revolução dos Cravos. Sua história chegou aos cinemas em 2011 com o filme "O Conde de Bordéus", um drama luso-israelense.

Não há como precisar quantas pessoas Aristides teria salvado. O que se sabe por certo é que foram esgotados todos os formulários de que dispunham o consulado portugues em Bordeaux, e os sub-consulados de Bayonne e Hendaye.

Sabe-se que entre janeiro e junho de 1940, o consulado de Bordeaux emitiu 1.674 vistos - isto é o que está documentado no livro de contabilidade do consulado.

Como bem lembrado pelo Rabino Kruger, um dos refugiados salvos por Aristides, esses vistos não eram individuais, mas familiares, abrangendo grupos de até 20 pessoas.

Agora você faça as contas.

21 de nov. de 2012

COMO É QUE É, GENTE?




Como faço todos os dias, levantei relativamente cedo e fui fazer o café.

Depois de botar a chaleira no fogo (aqui em casa não entra cafeteira elétrica), descasquei metade de uma banana e botei no pratinho que tenho na sacada de casa para os passarinhos, voltei para a cozinha, liguei o rádio e fiquei escutando tomando meu suco de laranja e ouvindo o noticiário enquanto esperava a água ferver.

O correspondente em NY contava sobre alguém que morrera após ser pisoteado num corre-corre, de duas mulheres trocando tiros e sobre uma mulher que usara gás de pimenta para afastar outros compradores do produto que desejava comprar, no caso, um X-Box.

Como havia pegado o bonde andando e não estava prestando muita atenção, até chegar no X-Box eu não fazia a menor ideia do que se tratava.

Até então eu pensava tratar-se de gente desesperada lutando pela sobrevivência num campo de refugiados lutando pela sobrevivência em algum país remoto; de gente desesperada por comida, por água pra beber; tão desesperada que nem está pensando em desperdiçar água para o banho.

Mas não. Era sobre a tal da black friday.

Pelo nome, achei que fosse alguma coisa sinistra, mas o repórter explicou que black friday é na verdade um dia eleito pelo comércio para limpar os depósitos para a chegada dos produtos a serem vendidos no Natal.

Morte, violência e selvageria para gastar dinheiro em quinquilharias.

A chaleira ferveu enquanto eu assimilava essa ideia.

Passei o café e liguei meu pc para ler as notícias do dia:

Na Inglaterra, uma grávida de gêmeos e mãe de dois meninos se atirou de um penhasco para a morte porque estava esperando mais dois meninos quando tudo que queria na vida era dar à luz uma menina.

Na Espanha, o Ministro do Turismo se mostra "embaraçado" depois do vazamento de uma foto onde aparece todo sorridente ostentando como um chepéu os testículos de um cervo morto que recém abatera.

Na Suécia, uma mulher de 38 anos mantinha há meses em seu apartamento a ossada do companheiro, com que ainda mantinha relações sexuais: "quero meu homem vivo ou morto", justificou-se ao ser presa.

Homem corta matou a cunhada degolada em frente aos sobrinhos. Preso horas depois, confessou que o fez por "invejar o sucesso do irmão".

Aí tem um vídeo dessas câmeras de vigilância que andam espalhando pelas cidades. Ele mostra uma moça caminhando. Por trás dela, um homem se aproxima rapidamente, e do nada desfere um murro violento na nuca da garota e foge ainda antes que ela caia desmaiada no chão.

Isso alternado com 78 fofocas "exclusivas" sobre celebridades, artistas retratando celebridades com jujubas, do novo record mundial de 5 dias jogando videogame sem parar, bronzeador instantãneo feito de pós de diamante e vendido em embalagem de perfume caro; e o Papa que escreveu em seu livro que não tinha burro nem vaca no presépio quando Jesus nasceu.

E lá vou eu ruminando esse misto de tragédias, baboseiras, fofocas, pseudo-notícias tendenciosas e inutilidades, até me deparar com isso:

Depois do encurtamento dos dedos dos pés, a amputação cirúrgica de dedos mínimos é a nova febre entre mulheres adeptas do salto-agulha. "Nunca me senti tão bem sobre alguma coisa que tenha feito", proclama uma recém-operada feliz por se livrar do tormento de décadas de dores crônicas e calos nos pés.

Sim, isso está escrito e publicado bem ali, com todas as letras e tem até foto pra provar. Duvida? Segue o link.

Se bobear, vai ter quem ponha na prática o photoshop maluco criado por Richard Darell que ilustra este post. (Original aqui)

Por que diabos ainda me espanto com a estupidez humana?

Em tempo: não consigo parar de pensar na grávida suicida. Será que se tivesse vivido para ter sua tão ansiada filha menina essa menina ia usar salto-agulha também?

19 de nov. de 2012

O AMOR E O TEMPO





Era uma vez uma pequena ilha onde viviam os sentimentos.

Um dia Cautela anunciou que como a ilha estava prestes a afundar todos deveriam construir seus botes e partir o quanto antes.

Enquanto os outros sentimentos corriam a providenciar seus botes, Amor, Confiança e Esperança decidiram ficar até o último momento possível.

E, como Cautela advertira, a ilha foi afundando rapidamente. Vendo que não haveria mais tempo para construir seu bote, Amor começou a chamar por socorro, enquanto Confiança e Esperança se divertiam despreocupadas tecendo colares de junco.

Aproxima-se então a Riqueza em seu grande e sólido bote.

- Riqueza, podes me levar contigo?

- Não, não posso. Meu bote está carregado com meus tesouros, não há lugar para vocês três. Consigo levar Confiança, que não pesa muito. - responde Riqueza.

Sem hesitar, Confiança deixa os outros para trás, subindo no bote da Riqueza:

- Vocês vão ficar bem, tenho certeza disso! - exclama com um sorriso.

- Oh, espero que sim! - responde Esperança acenando despreocupada.

Ao fazê-lo, Esperança escorrega da pedra onde se equilibrava e não fosse o abraço forte do Amor, teria se perdido nas águas.

Eis que surge a Inveja remando seu bote, e ao ver o Amor tão fortemente abraçado à Esperança manobra o bote com violência afastando-se dali.

Logo atrás vem a Vaidade, e é a esta que Amor se dirige suplicante:

- Vaidade, por favor, ajude-nos!

- Nem pensar! - exclama vaidade - Molhados como estão vocês vão arruinar meu lindo bote!

Instantes depois, Tristeza se aproximava. Mais uma vez, Amor pediu por socorro:

- Tristeza, leve-nos com você!

- Oh, Amor... fosse só você eu até podia pensar, mas a Esperança só me traz mais infelicidade.

E dizendo isso, seguiu cabisbaixa flutuando sozinha em seu pequeno bote escuro.

Eis que se aproxima Alegria que de tão entretida consigo mesma nem reparou nos dois sentimentos à deriva fortemente abraçados um ao outro.

A noite caía e uma densa neblina se espalhou sobre as ondas encrespadas da maré. Lutando contra o mar agitado, Amor acaba deixando que Esperança lhe escape dos braços. Sozinho na escuridão, começa a chorar lamentando sua má sorte.

Eis que uma voz rouca o chama:

- Venha, Amor, vamos levá-lo.

- Eu perdi Esperança... - lamenta o Amor subindo ao bote.

- Não se preocupe, ela nunca está perdida. - consola outra voz.

Em silêncio, Amor observa as silhuetas encarquilhadas de seus salvadores a remar na quase total escuridão. Exausto, acaba adormecendo.

Um bom tempo depois é despertado pelo baque do bote contra a terra firme.

Em instantes, uma das figuras salta do bote afastando-se rapidamente. Pestanejando, Amor se dirige à velhinha que ficara sentada no bote como a esperar por sua saída para voltar ao mar:

- Desculpe-me, na confusão não perguntei seus nomes...

- Me chamo Sabedoria. - disse a velhinha - E aquele ancião que vai lá longe é o Tempo, meu irmão mais velho.

- O Tempo? - pergunta Amor assombrado - Por que veio em meu socorro, se nunca faz nada por ninguém?

Sabedoria alargou a boca em um largo sorriso de entendimento, então falou:

- Porque só o Tempo é capaz de entender quão valioso é o Amor.

(imagem: "Navio em Mar Tempestuoso",  por Ivan Aivazovsky)

13 de nov. de 2012

SVETLANA




Desde pequena Svetlana acalentara um único sonho, e uma grande paixão.

Sua paixão era a dança, a qual se dedicava de corpo e alma.

Seu sonho era ser uma gran ballerina no Ballet Bolshoi.

Conformados, seus pais já há muito haviam desistido de tentar interessá-la por outros assuntos, outras atividades. Os rapazes já nem arriscavam um olhar: o coração da bela Svetlana só tinha lugar para a dança, e tudo o mais era sacrificado pelo dia em que ela se tornaria uma bailarina no Ballet Bolshoi.

E tanto amor, tanta dedicação finalmente deram frutos: Sergei Davidovitch, mestre do Ballet Bolshoi estava selecionando novos talentos para a companhia. Recomendada por vários mestres e instrutores como um genuíno talento, Svetlana foi convidada para uma audição.

Nas semanas que antecederam à audição, Svetlana trabalhou até a exaustão, ensaiando cada detalhe, revisando os mínimos movimentos: sua apresentação seria perfeita custasse o que custasse: era sua única chance.

Finalmente chegara o grande dia. Tensa, mas determinada, Svetlana apresentou-se ao comitê de seleção, e sob o olhar crítico de Sergei Davidovitch, dançou como se fosse seu último dia na Terra, flutuando pelo salão com a leveza de um anjo e a precisão de um relógio suíço.

Ao final da apresentação, ainda ofegante, aproximou-se do grande mestre e perguntou:

- Então, o senhor acha que eu posso vir a ser uma gran ballerina?

A resposta foi tão avassaladora, que antes mesmo de ouvir o resultado da audiência, Svetlana retirou-se aos prantos. Entre lágrimas passaram-se os dias, os meses, e ainda anos depois, a ríspida resposta a assombrava como um pesadelo:

- Não. - dissera Sergei Davidovitch sem pestanejar.

E Svetlana sentira a terra sumir sob seus pés latejantes.

Num arroubo de frustração, jogara no lixo as sapatilhas, decidida a nunca mais tornar a calçá-las.

Mas com o tempo, o amor à dança falou mais alto. Tendo desistido do sonho de tornar-se uma gran ballerina, Svetlana conformou-se em ensinar, tornando-se uma professora dedicada e exigente.

Dez anos se passaram até que criasse coragem de assistir a apresentação anual que o Ballet Bolshoi promovia em sua região.

Ao procurar seu assento na primeira fila, reparou na austera presença de Sergei Davidovitch, que ainda exercia a função de ballet master, uns poucos assentos adiante do seu.

No final da apresentação, tomou coragem e se aproximou, contando o quanto quisera um dia fazer parte daquele corpo de baile, e o quanto ainda lhe doía a rejeição.

- Mas minha filha... - disse Davidovitch com uma ponta de ternura - Eu digo isso a todas as aspirantes.

- Como pode ser tão cruel? - protestou Svetlana à beira das lágrimas - Foi uma grande injustiça!

- Perdoe-me, minha jovem... - defendeu-se Davidovitch - Mas você nunca poderia ter sido grande o suficiente, se pôde abandonar seu sonho pela opinião de outra pessoa.

(imagem: "Espera", Edgar Degas)

12 de nov. de 2012

PRA PENSAR


Bom dia e uma semana produtiva a todos!

10 de nov. de 2012

10 PROVÉRBIOS AFRICANOS


Eu ia comentar hoje sobre a fila para o show da Lady Gaga, porque não consigo parar de pensar no rapaz que deixou de fazer o vestibular para o qual estava inscrito (mesmo tendo pagado e frequentado um cursinho desde o começo do ano) porque se fosse fazer o vestibular não ia poder ficar na fila; ou em outro que depois do show volta pra fila pra esperar pelo show da Madonna que eu nem sei quando que é.

Não sei se é a idade ou o cansaço, mas acabei decidindo que não vale nem a pena bater mais nessa tecla:

Cada qual com seu igual, pensei lembrando minha avó que adorava ditados.

Como uma coisa leva à outra, aí vai:


A Sabedoria é como um baobá: homem algum pode abarcá-la sozinho. (povos akan e jeje)

O homem que aponta um dedo tem 3 outros apontados contra si. (provérbio axanti)

Não se ensina os caminhos da floresta a um velho gorila. (Congo)

Quem foi mordido por cobra teme até lagartixa. (Uganda)

A chuva bate no leopardo mas não lava suas pintas. (provérbio axanti)

Aquele que pergunta não pode escolher as respostas. (Camarões)

Porque um homem matou seu cabrito não vá matar-lhe um boi. (Quênia)

O latido do cão não é poderoso, mas assusta. (Libéria)

Uma árvore se conhece pelos frutos. (provérbio zulu)

Madeira já tocada pelo fogo queima mais fácil. (provérbio axanti)

9 de nov. de 2012

SARGAL SINGH




Sargal Singh era tão amado por um comerciante que no dia em que morreu o homem raspou a cabeça e se vestiu de luto.

Um freguês, ao entrar na loja, perguntou ao comerciante o motivo do luto.

- Sargal Singh morreu. - responde o comerciante com tristeza.

Como gostava muito do comerciante e não queria ofendê-lo perguntando de quem se tratava, logo após deixar a loja o freguês raspou a cabeça e se vestiu de preto também.

Ao vê-lo passar pela rua, várias pessoas perguntaram o motivo do luto.

- Sargal Singh morreu. - disse o homem.

A notícia logo se espalhou e em questão de horas todo o vilarejo andava de luto.

Ao ouvir a notícia, um dos ministros do rei raspou a cabeça e vestiu-se de preto também.

Reparando em seu ministro de luto, o rei perguntou:

- Por quem você está de luto?

- Sargal Singh. - responde o ministro com gravidade.

- Quem é Sargal Singh? - insiste o rei.

Não podendo responder, o ministro sai às ruas para perguntar. Ninguém parecia saber precisar exatamente quem era Sargal Singh, mas todos eram unânimes em apontar a loja do comerciante como foco de origem da epidemia de luto.

- Sargal Singh era Um comerciante, sua majestade. - anuncia o ministro curvando-se perante o rei.

- Pela quantidade de pessoas de luto, imagino que fosse muito estimado... - pondera o rei olhando pela janela do palácio as pessoas enlutadas indo e vindo pelas ruas.

Ele então ordena a seus servos que raspem sua cabeça e o vistam com trajes de luto.

Instantes depois, o rei e todos os seus ministros mais servos e membros da corte percorrem as ruelas em comitiva para prestar homenagem ao falecido.

Ao saberem que o rei em pessoa viera prestar homenagem a Sargal Singh, as pessoas do vilarejo abandonam seus afazeres e correm para a frente da loja onde se amontoam aos chutes e cotoveladas.

Ao chegar à frente da loja, a comitiva se detém. O silêncio é tanto que se pode ouvir uma mosca.

A um gesto do rei, um dos servos bate solenemente à porta do comerciante.

Um homem franzino e parecendo muito abatido abre a porta, arregalando os olhos com surpresa ao deparar-se com a presença real.

- M-m-majestade... - balbucia o homem curvando-se até tocar os joelhos com a fronte.

- Viemos prestar homenagem à memória de Sargal Singh. - anuncia um dos ministros - Pois se tratava de um homem justo e honesto; uma pessoa das mais queridas e estimadas deste reino.

Indiferente ao visivel embaraço do comerciante a comitiva percorre a loja indo até os aposentos privados da família do comerciante onde estanca surpresa por não encontrar o menor sinal de velório.

- Por aqui! - grita alguém pela janela, apontando o pátio aos fundos da casa do comerciante.

Ao chegar ao pátio, o rei, seus ministros e membros da corte junto com toda a elite do vilarejo se deparam com a inusitada cena dos três filhos do comerciante chorando ao redor de um burro morto.

(foto: " Amanullah cavalgando seu burro", vila de Zadyan, Afeganistão. Por Anna Badkhen)

6 de nov. de 2012

POR 1 REAL E 60 CENTAVOS

(foto: Margareth Humphrey)


Num tempo em que berços vazios contribuem lamentavelmente na geração de espaços vazios, é necessário buscar fontes externas de abastecimento. Se não provermos de nosso próprio estoque, deixamo-nos ainda mais expostos à ameaça da abundância dos milhões das raças asiáticas nossas vizinhas.
(Arcebispo de Perth, ao receber uma leva de "órfãos" ingleses na Austrália em agosto de 1938)


Está proposto que o Reino Unido procure na Grã-Bretanha e na Europa, em cada um dos três primeiros anos do pós-guerra, pelo menos 17.000 crianças por ano (ou seja, 50 mil em três anos) disponíveis e adequadas para migrarem para a Austrália.
(Declaração do Primeiro Ministro australiano, dezembro de 1944)

Esta remessa é a pior que já recebi. Sob qualquer aspecto considerado, não há nada que os recomende... Já haviamos destacado na passado que é vatnajoso para a Austrália receber levas de imigrantes de bom e saudável sangue inglês. Se não são nem bons nem saudáveis devemos mudar nossas declarações e perder um dos nossos mais lucrativos itens de propaganda.
(Relatório da Sociedade Fairbridge sobre crianças migrantes chegando à Austrália em 1950)

("ófãos chegam para começar uma vida nova")

Dizem que quando a vida imita a arte, sobrevém a farsa. A história de centenas de milhares de crianças exiladas pelo Reino Unido ao longo de três séculos para popular suas metástases em quatro continentes não podia ser uma maior confirmação dessa regra.

Em 1838 uma novela social escrita por Charles Dickens calou fundo aos corações da burguesia emergente ao retratar com crueza a miséria e desventuras do pequeno órfão Oliver Twist. O impacto dessa obra nas mentes e corações de toda uma sociedade foi o ponta-pé inicial numa séria de reformas que culminaram na atual Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989.

Mas bem antes disso, antes mesmo da novela de Dickens; em 1835, outro escritor menos afamado chamado Edward Augustus, publicou a novela intitulada The English Boy at the Cape: An Anglo-African Story, que chamou a atenção do mundo dito civilizado para a situação de miséria de ilhares de órfãos expatriados pela coroa britânica para trabalhos forçados nas colônias. Logo as redações dos jornais ingleses foram inundadas por correspondências vindas de todas as partes dando testemunho das privações e abusos sofridos por essas crianças.

O escândalo revelou as atividades de uma sociedade "filantrópica" denominada Children's Friend Society, que tinha por objetivo "suprimir a vadiagem juvenil através da reforma e emigração de crianças".

No rastro do escândalo, o governo suspendeu as expatriações para a África do Sul ordenando uma investigação e ainda reduzindo as levas de crianças para a Austrália e o Canadá.

É interessante notar que em momento algum a opinião pública voltou seus olhos para a situação de centenas de milhares de crianças trabalhando como escravas na indústria emergente na própria Inglaterra, mas isso é assunto para outro post.

Annie MacPherson, uma filantropa Quaker viu isso, no entanto; e numa tentativa de dirimir a miséria dessas crianças, fundou a Home of Industry, uma espécie de orfanato-indústria, onde as crianças trabalhavam, mas também eram alimentadas e educadas. Com o tempo, no entanto, MacPherson acabou se convencendo que a única solução para essas crianças era o envio para as "terras da oportunidade" onde, ela acreditava, poderiam encontrar alguma possibilidade de ascensão social. Annie então abriu no Canadá, mais precisamente nas cidades de Belleville, Galt, Knowlton e Ontario, diversos "lares de distribuição".

Foi o começo de um massivo programa de expatriação que se estendeu até 1874, quando o governo inglês recebeu o relato de Andrew Doyle, enviado ao Canadá para averiguar a situação das crianças. Entre outras coisas, Doyle reparou que:

(...) milhares de crianças britânicas, já em circunstâncias dolorosas, foram lançadas à deriva, sendo sobrecarregadas ou maltratadas pelos colonos do Canadá, que embora geralmente honestos mostraram-se rígidos feitores.

Com mais esse escândalo, medidas foram tomadas para amenizar a situação das crianças e a exportação (com o perdão da palavra) para o Canadá diminuiu dramaticamente.

Em 1909, na África do Sul, foi fundada a Society for the Furtherance of Child Emigration to the Colonies (Sociedade para a Promoção da Emigração de Crianças para as Colônias), posteriormente denominada Child Emigration Society (Sociedade da Emigração Infantil), e finalmente estabelecida como Fairbridge Foundation (note-se como o nome vai sendo remodelado para atenuar o impacto), dedicada a educar crianças órfãs e negligenciadas e treiná-las em fazendas-escolas dispersas pelo Império Britânico. Em 1912, com o apoio material e financeiro do governo, a Fundação Fairbridge se estabeleceu na Austrália onde passou a operar.

Cabe ressaltar que nem em todas essas crianças eram órfãs. De fato, uma expressiva proporção era de crianças que haviam sido temporariamente colocadas pelos pais aos cuidados do estado dadas as condições de miserabilidade em que se encontravam. Outras foram recolhidas das ruas onde se achavam no que hoje definimos como "situação de vulnerabilidade".

Ao serem compulsoriamente deportadas da Inglaterra, essas crianças eram levadas a acreditar que seus pais haviam morrido, e que uma vida de abundância as esperava. Muitas foram de fato recebidas em lares amorosos, mas a maioria foi explorada como mão-de-obra barata em empreendimentos agrícolas onde sofreu maus trados e teve negados os direitos básicos à saúde e educação; sendo ainda proibidas de se socializar com as crianças "nativas".

E estamos falando de crianças dos 3 aos 14 anos, tendo a maioria entre 7 e 10 anos de idade

Via de regra essas crianças eram embarcadas sem nenhum documento, sem uma certidão de nascimento que fosse; como verdadeiros párias; e como se não bastasse, à chegada irmãos e irmãs eram separados e enviados a regiões distantes umas das outras rompendo os últimos laços familiares que ainda restavam.

Coube a uma mulher, Margareth Humphreys, levantar o véu da vergonha que encobria essas operações em pleno século 20.

Trabalhando como Assistente Social envolvida no apoio pás-adoção no Nottinghamshire County Council, na Inglaterra, Margareth recebeu em 1986 uma carta de uma mulher australiana contando que aos quatro anos de idade havia sido enviada para uma instituição na Austrália, e agora, depois de adulta, buscava ajuda para localizar seus pais biológicos na Inglaterra.

Em 1987 Margareth trouxe a público a realidade do programa eufemisticamente denominado Home Children (versão 4.0 da "Sociedade para a Promoção da Emigração de Crianças para as Colônias"), revelando um extenso e intricado mecanismo de deportação compulsória de crianças para a Austrália, Canadá, Nova Zelândia e Rodésia, entre outras partes do Reino Unido.

Dividindo-se entre a Austrália e a Inglaterra, Margareth registrou o relato de vida de dezenas de expatriados, e os horrores, traumas e abusos a que foram submetidos.

Tudo isso porque manter uma criança institucionalizada na Inglaterra custava 5 Libras por dia (mais ou menos uns 16 Reais), mas cerca de 10% desse valor nos outros países do Reino Unido. 

Para dar uma ideia da dimensão do negócio, o Senado australiano estima que cerca de 500 mil crianças foram trazidas ao país até 1990. E estamos falando só na Austrália, ainda tem o Canadá, o Zimbaue (antiga Rodésia) a África do Sul e a Nova Zelândia.

(deixando a Inglaterra)

God save their queen.

Em tempo: a  história de Margareth foi parar na telona em 2010, no filme Oranges and Sunshine, dirigido por Jim Loach e estrelado por Emily Watson.

2 de nov. de 2012

POR QUE FINADOS?




O Dia dos Mortos, diferente do que entende nossa eufemística contemporaneidade psicoanalisada, não é um dia para se botar flores em túmulos e chorar uma lágrima pelos que se foram purgando nossos próprios sentimentos de culpa pelo não feito quando ainda viviam.

O Dia de Finados não foi criado para acalentarmos a saudade e nos deprimirmos pela falta que sentimos de nossos parentes e amigos que se foram, mas sim para ativa e positivamente intervirmos em seu destino no além-túmulo, projetando luz e energias positivas fortes o suficiente para encontrá-los no limbo da não-consciência que é o purgatório, lembrando-os nem que por um instante, de quem foram em vida e mostrando a eles os frutos das sementes que plantaram.

Se enquanto vivos estamos sujeitos à Misericórdia Divina, ao morrermos temos que lidar com a Justiça Divina. Esses dois princípios sequer se complementam: são excludentes.

A Misericórdia Divina é o que nos permite, EM VIDA, reparar nossos erros, corrigir nossos caminhos e purificar nossas almas. Em vida, podemos mudar, melhorar, evoluir. O Deus da Igreja Católica Apostólica Romana vê, entende e até torce por isso, já que foi sua idéia nos dotar do livre arbítrio, ou a capacidade de obrar pelo bem ou pelo mal. Curta e grosseiramente: enquanto estamos vivos, podemos empurrar com a barriga, enganando-nos com a idéia de que a qualquer momento podemos mudar, melhorar e nos redimir; como o proverbial ladrão arrependido.

Já a Justiça Divina é outra coisa bem diferente. A barganha acaba com a vida: à Justiça Divina cabe a sentença e a execução da pena. Para alguns, é ceu ou inferno, sem escalas.Mas a grande maioria das pessoas não foi em vida nem suficientemente boa para merecer o Paraíso, nem tão má que mereça as chamas do inferno.

Para isso foi criado o Purgatório, um estágio probatório, (ou uma pena alternativa, para usarmos o jargão jurídico).

A questão é que o Purgatório é o limbo da não-consciência, logo, da não-ação. Como pode, portanto, uma pessoa reparar o mal-feito e redimir-se em tal situação? Se não há consciência, se não há a possibilidade de ação, não é possível a transformação.

É aí que entramos nós, os vivos, pois, segundo a Igreja Católica, um dia a cada ano, mais especificamente no Dia de Finados, o Tribunal Divino é aberto para audiência pública, dando ouvidos às preces que fazemos aqui da Terra em favor de nossos falecidos que se acham no purgatório.

Essa é a tradição. E só foi assim instituída, porque as pessoas parecem necessitar de ritos que exerçam pressão social para que pratiquem o bom senso.

Mas muito mais importante que limpar túmulos e enfeitá-los com flores, são os sentimentos de gratidão e o amor legítimo pelo que se foi que fazem a diferença tanto para eles como para nós.

Para mim, todo o dia é dia de finados, e toda a hora é hora de honrar a memória dos que me antecederam com lembranças de ternura, amor e conforto. Acredito com isso estar fazendo menos penoso o seu período de provação.

(Pintura: "O Julgamento Final", Hieronymus Bosch)