Aquele teria sido um
dia como outro qualquer, não tivesse Mara concluído que era Deus.
Já devia ter desconfiado por causa dos pássaros, mas diabos, era
Deus e não Einstein. “Daqui em diante os dias têm que ser sempre
especiais” pensou “é assim que deve ser quando se é Deus”.
Mas logo descobriu que
isso só não adiantava: os dias continuaram lerdos e cinzentos. E
Mara concluiu que para ser Deus também precisaria parecer Deus. Os
desenhos que encontrou em livros e na internet não ajudaram muito:
não queria de uma hora pra outra virar um velho barbudo e rebugento,
ainda mais com aquelas roupas e sandálias horríveis! Parecer com
aquele Deus estava definitivamente fora de cogitação.
“Ainda assim tem os
pássaros”.
Também havia as
flores, os pequenos animais e, mais recentemente, algumas nuvens.
Com as nuvens, foi
assim: outro dia ela chorou e o dia começou a chover. Ao acordar
esquecida das lágrimas, o dia também esqueceu da chuva. Tentou
chorar, só pra ver o que acontecia, mas não adiantou. Podia chorar
daquele outro jeito, sem motivo algum, mas não conseguia chorar
quando queria.
Decidiu rir, e isso foi
bem mais fácil. “Como pode?”, perguntou-se “ser tão mais
fácil sorrir do que chorar, quando é muito mais difícil ser
feliz?”
Abriu o caderno de
matemática desperdiçando horas preciosas para decifrar a lição.
“Se fosse mesmo Deus” cutucava uma vozinha lá no fundo,
“entenderr matemática ia ser mais fácil que dar um pum”.
Fechou o caderno
contrariada: “E Deus, por acaso, precisa de matemática?”
Ligou a televisão e
pelo resto da tarde esqueceu o assunto.
Às sete e vinte em
ponto o perfume da mãe entrou pela porta da frente.
Sem nem perguntar como
havia sido o dia, ela já veio reclamando da bagunça e mandando
recolher os cadernos espalhados na sala. Mara sentiu ganas de usar
seus poderes divinos, mas se conteve: Deus não perde seu precioso
tempo com picuinhas.
Desligou a tv e deixou
a sala sem o menor rastro de sua divina presença.
Às dez pras oito o
perfume do pai chegou batendo a porta.
Às oito e quinze os
três sentavam à mesa hipnotizados pela tv.
Foi quando Mara
concluiu que Deus não devia assistir televisão: todas aquelas
notícias horríveis só serviam pra lembrar que devia estar mais
preocupado com a paz no mundo e o fim do aquecimento global do que
com a cassata que esperava no freezer.
- O que você faria se
fosse Deus? – perguntou de repente ao pai.
- Trocaria de carro,
mandava meu patrão pro espaço e ia morar nas Bahamas – respondeu
o pai sem vacilar.
- E você, mãe?
Dona Margarete respirou
fundo, olhando para o teto.
- Bem... – começou
puxando forte do fundo do cérebro – Não acho que fosse precisar
de plástica nem de lipoaspiração... Assim, se eu fosse Deus ia ter
todas as roupas e sapatos que quisesse... E também ia viajar,
conhecer o mundo... Paris, Miami, Nova Iorque...! Ia ver tudo que é
museu, ir à ópera... a Broadway... ai, tanta coisa!
Calada, Mara concluiu
que seus pais não entendiam nada de ser Deus: o que eles queriam era
ser ricos como o Onassis.
- E você, minha filha?
– perguntou o pai.
- Eu?! – Mara dá de
ombros – Não sei... acho que nada.
- Nada?
- É difícil ser Deus,
porque qualquer coisa que a gente faça pode ter sérias
conseqüências, então acho que de medo eu não ia fazer nada.
Nisso começou a
novela, e todo o brasileiro sabe que novela é mais importante que
Deus.
A empregada entrou e
saiu como uma sombra sem sequer tilintar os pratos e talheres que
recolhia da mesa. Mara a seguiu até a cozinha.
- Marialva, o que você
faria se fosse Deus?
- Acabava com a miséria
no mundo – foi a resposta imediata – E de quebra acabava com tudo
quanto é bandidagem.
- E depois?
- Ah, depois eu ia
dencansar. Que só dar conta de tanta miséria e bandidagem deve ser
uma trabalheira danada.
- Mas, se acabar com a
miséria e a bandidagem no mundo, pra onde é que elas irão? Porque
se alguma coisa some num lugar, tem que aparecer em outro, porque
nada deixa simplesmente de existir, exceto quando a gente morre, mas
ainda assim fica a carcaça...
- Ora, bolas! –
impacientava-se Marialva – Deus é Deus, ele dá um jeito.
- Mas, se você
fosse Deus, que jeito daria?
- Sei lá – Marialva
bateu com as mãos na água ensaboada da pia – Não sou Deus
mesmo... mas que coisa... Sabia que pensar assim é pecado?
- Pecado? – repete
Mara com assombro.
- É. – afirma
Marialva secando as mãos no avental – Imaginar que a gente pode
ser Deus é pecado, e dos grandes.
Mara podia ter
respondido que sendo ela própria Deus, não era pecado algum, mas
deixou por isso. Naquele momento Deus decidira que estava com sono. O
mundo que esperasse.
Na manhã seguinte,
Deus acordou atrasado para a escola, porque mesmo cansado e
sendo Deus, não conseguiu pregar o olho antes das 4 da manhã.
Engoliu um copo de Nescau enquanto vestia o uniforme e correu até a
parada do ônibus.
Indiferente à presença divina, o coletivo passou batido, cuspindo gente pelas janelas.
Mara teve ganas de gritar uns palavrões, então ocorreu-lhe que
sendo Deus, não precisava de ônibus. Podia simplesmente parar o
tempo, ou fazer que passasse mais devagar e assim ir andando até a
escola e aproveitar cada detalhe daquela manhã radiante.
Deus chegou na escola
depois do recreio, e com isso, ganhou um bilhete nada amigável para
ser assinado pelos pais.
“Acabei esquecendo de
parar direito o tempo...”, pensou. “Ou, quem sabe, estivesse tão
ocupado com coisas mais importantes. .. Afinal, Deus está em todas
as partes e ao mesmo tempo, mas não tem como a cabeça estar em mais
de um lugar...”
- Querem ficar calados,
pelo amor de Deus? – gritou a professora de português
interrompendo o raciocínio de Mara justo quando chegava a essas
conclusões importantes.
- Não entendi,
professora... – Mara levanta a mão – Quando é que Deus lhe deu
o direito de barganhar em seu nome?
A classe explode em
gargalhadas.
Logo, Deus ganhava um
segundo bilhete ainda menos amigável para ser assinado pelos pais.
- Eu não entendo... –
Mara argumentara ao diretor, que por ser padre devia ter muita
experiência nessas coisas sacras – Não foi o próprio Deus quem
disse “não usareis meu nome em vão”?
Padre Manfredo teve que
sorrir:
- É que não levamos
as coisas assim, no pé da letra...
- Mas sempre esperam
que Deus leve, não é?
O diretor fechou a
cara, rabiscou alguma coisa no bilhete e a mandou esperar no
corredor.
Enquanto esperava, Deus
ficou sentado na secretaria pensando. E quanto mais pensava, mais
concluía que as pessoas não levavam Deus tão a sério quanto
parecia. Afinal, a qualquer coisa que acontecia exclamavam “Deus me
livre!”, um grande rebuliço era sempre um “Deus nos acuda”,
sempre que se despediam, era “vá com Deus”, como se Deus fosse
um chaveiro, um celular ou um cartão de crédito “não saia de
casa sem ele”... E Deus isso, Deus aquilo.... Ela é que não
queria ser mandada de lá pra cá por qualquer bobagem... Mas o pior
era o “meu Deus”... Ora, e lá Deus era propriedade de
alguém?
A cigarra tocou, e Deus
foi mandado de volta à sala de aula.
- Por sua causa, aquela
bruxa mandou a gente ler todo o capítulo pra semana que vem, e já
avisou que vai ter prova!
Aquela não era a
vontade de Deus.
Saindo da escola ao
meio-dia, resolveu caminhar de volta também. Entre a casa e a escola
havia pelo menos umas três igrejas, um centro espírita e um
terreiro de umbanda. Decidiu espiar se estava por lá.
O primeiro templo era
uma sala comercial adaptada para acomodar um monte de pessoas
sentadas em longos bancos perfilados à esquerda e à direita. Ao
fundo, uma escrivaninha coberta por uma pano branco fazia as vezes de
altar. No canto, uma bateria, microfones e amplificadores
misturava-se a uma barafunda de fios remendados. Um sujeitinho moreno
e atarracado, enfiado num terno barato a recepcionou do fundo da
sala:
- Ah, uma jovem fiel! O
quê a aflige, minha filha?
- Nada. – mentiu Mara
– Só entrei pra olhar. Gostei da idéia da música.
- Então volte às
sete, que é quando temos nosso culto... – convida o homem – É
muito bonito: todos cantamos em louvor a Deus.
- Ótimo! – exclamou
Mara se retirando.
- Espere! – exclama o
homem entregando um folheto – Leve isto, e vá em paz, minha filha.
Ó
Deus de Abraão, de Jacó e de José
Tua
Luz nos traz justiça
Confirmando
a nossa fé
Por
isso aqui estamos e erguemos nossa voz
O
Senhor é meu Pastor
Dize
e responderei
Deus seguiu então para
o segundo templo, bem mais requintado e luxuoso que o primeiro. Logo
à entrada, à guisa de recepção, numa caixa de acrílico
transparente cheia de notas e moedas lia-se a inscrição “dízimos
aqui”. Um pequeno grupo de pessoas se espalhava pelos bancos
contemplando as paredes lisas com olhares vazios. Uma mesinha no
canto disponibilizava panfletos impressos perfeitamente organizados
em pilhas com impressões em cores diferentes. Deus pegou um azul.
SINAIS
DA SEGUNDA VINDA
Jesus
Cristo Voltará à Terra
O
Salvador disse a Joseph Smith: "Eu Me revelarei com poder e
grande glória (...) e (...) habitarei com os homens na terra por mil
anos, e os iníquos não permanecerão." (D&C 29:11; ver
também capítulos 43 e 44, "A Segunda Vinda de Jesus Cristo"
e "O Milênio".) Jesus nos disse que certos sinais e
acontecimentos irão prevenir-nos quanto à proximidade de Sua
segunda vinda, também chamada de "o grande e terrível dia do
Senhor" (D&C 110:16).
Assombrado, Deus seguiu
a leitura:
Os
Lamanitas Tornar-se-ão um Grande Povo
O
Senhor disse que quando Sua vinda estivesse próxima, os lamanitas se
tornariam um povo reto e respeitado. "Mas antes que venha o
grande e terrível dia do Senhor (...) os lamanitas florescerão como
a rosa" (D&C 49:24). Grande número de lamanitas da América
do Norte e do Sul e do Pacífico Sul estão hoje recebendo as bênçãos
do evangelho.
E mais adiante:
O
Conhecimento dos Sinais dos Tempos Pode Ajudar-nos
Ninguém,
exceto o Pai Celestial, sabe exatamente quando o Senhor virá. O
Salvador ensinou a esse respeito ao contar a parábola da figueira.
Ele disse que, quando vemos a figueira soltando folhas, sabemos que o
verão está próximo. Da mesma forma, quando virmos os sinais
descritos nas escrituras, saberemos que Sua vinda está próxima (ver
Mateus 24:32-33).
O
Senhor deu esses sinais para ajudar-nos. Podemos, dessa forma,
colocar nossa vida em ordem e preparar a nós próprios e a nossa
família para o que ainda está para vir.
Não
devemos preocupar-nos com as calamidades, mas esperar com alegria a
vinda do Salvador. O Senhor disse: "Não vos perturbeis, pois,
quando todas estas coisas (os sinais) acontecerem, sabereis que as
promessas que vos foram feitas se cumprirão" (D&C 45:35).
Ele disse que os que forem retos não serão destruídos quando Ele
vier "mas suportarão o dia, e a terra ser-lhes-á dada por
herança (...) e seus filhos crescerão sem pecado (...) pois o
Senhor estará em seu reino, e a Sua glória estará sobre eles, e
ele será o seu rei e o seu legislador" (D&C 45:57-59).
Discretamente, Deus
surrupiou um exemplar de cada cor, enfiou na mochila e saiu dali sem
pagar o dízimo.
A terceira parada foi num prédio cinzento onde se entrava subindo uma enorme escadaria. O
interior era escuro e frio, e as paredes decoradas com uma profusão
multicolorida de pinturas e estátuas competindo pela atenção com
os vritrais das janelas em arco. Como nas anteriores, longos bancos
se alinhavam perfeitamente, mas este templo tinha seis fileiras que
convergiam numa abóbada dourada dominada pela fantasmagórica
figura de um enorme cristo ensanguentado suspenso por fios de náilon. Num canto logo à esquerda, duas velhas
ajoelhavam diante de dezenas de velas. Dali é que vinha o
cheiro rançoso de parafina.
Curioso, Deus
seguiu pelo tapete vermelho até chegar a cúpula dourada.
À esquerda e à direita, reparou na riqueza dos entalhes das
casinhas que abrigavam as imagens coloridas em dourado, vermelho, cinza e branco.
Intrigado, Deus subiu os cinco degraus que colocavam a cúpula meio
metro acima do resto do lugar. Uma mulher austera apareceu do nada para arrastá-lo escada abaixo:
- Não tem respeito? –
ralhou.
- Por quê? É
proibido? – perguntou Mara confusa.
- Os passos dos fiéis
páram ao pé da escada.
- E Deus, pode?
- É onde ele mora.
Deus ficou parado,
boquiaberto enquanto a mulher subia os degraus resmungando:
- Essas crianças de
hoje... Não têm respeito por nada!
Deus
observou a cúpula tentando encontrar o seu quarto. A única
coisa com alguma privacidade era uma pequena capelinha dourada,
trancada à chave. Mas ele é que não ia querer morar numa casinha
tão apertada, ainda mais ficar trancafiado daquele jeito, sem poder
sair quando quisesse!
De saída, recolheu um
panfleto impresso em tinta cor de laranja.
Eu,
pecador, me confesso...
...
Tende piedade de nós
cântico
de entrada:
A
ti meu Deus cantemos os homens louvor
Ao
teu amor respondam com mais amor
Senhor
a tua igreja somos nós
Numa
só voz
É
teu tudo que somos e o que temos
E
aqui vimos para adorar
Senhor,
a graça imensa de viver
Sem
merecer,
A
graça de ser filho e de te amar
Vamos
louvar
E
agradecer
Da
culpa tantas vezes repetida
Em
nossa vida,
Senhor,
a tua Igreja militante
Quer
neste instante
Pedir perdão
Senhor,
no sofrimento e na alegria
De
cada dia
Ajuda-nos
a amar o que é melhor
E o teu amor
Aumente em nós
Deus saiu dali
perguntando-se o que aquela gente fizera de tão horrível, e o que ele fizera para merecer tanta gratidão. Do que estavam falando? Ele ainda não fizera
nada, era Deus só a uns dois dias... Ou será que já era Deus antes
de saber? Talvez antes fosse Deus em outra pessoa, e era ela só há
pouco tempo. Se fosse assim, sabe-se lá o que tinha feito antes...
Deus é que não sabia.
Esses pensamentos foram
esquecidos ao chegar à porta do prédio baixo e mal conservado onde dezenas de pessoas humildes se espremiam, algumas tão doentes que
mal conseguiam parar em pé. Quando Deus já ia entrando, um homem magro de terno e sandálias advertiu:
- Tem que esperar na fila.
Deus entrou na fila e
esperou. Aos sussurros, as pessoas contavam dores e mazelas mazelas. Deus
esperou por mais quinze minutos, mas como a fila não andava decidiu
deixar para outra hora. Àquela altura já eram duas e meia e
Marialva devia estar subindo pelas paredes.
Mas tinha ainda uma
última parada.
Entrando por uma viela lamaçenta, chapinhou até um
casebre reformado com as paredes caiadas de branco.
- Está fechado. –
anunciou uma velha gorda debruçada na janela de um barraco logo à
frente ainda antes que Deus tocasse a grade do portão – Se quer
serviço, bote num envelope com o nome, o pedido e o dinheiro.
Deus catou na mochila uma
nota de 1 real, e demorou para rabiscar um pedido numa
folha do caderno. Dobrou cuidadosamente a folha com o dinheiro dentro
e ficou esperando.
- Bota aí, na
caixa do correio. – disse a velha sumindo por trás da
cortina floreada.
No último instante,
Deus mudou de idéia. Guardou a folha dobrada com o dinheiro e voltou
chapinhando até a avenida.
Como era de se esperar, Marialva estava subindo pelas paredes:
- Por onde andou, menina? Tem idéia do susto que
me pregou? De onde é que saiu esse barro todo? Agora eu é que vou
ter que lavar!
Mara quase respondeu
que não cabe aos mortais questionar os caminhos de Deus, mas achou
mais prudente largar a mochila no quarto e esperar enquanto o almoço esquentava no microondas.
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imagem: “The Child Grew Strong in Spirit”, por Ann Guerri
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