3 de jan. de 2008

O TIO QUE EU NÃO TIVE


Em meus incertos (e quando não são?) tempos de adolescente, entre as centenas de lombadas - algumas já então bem desgastadas, da biblioteca de meus pais um título me chamou a atenção. Fosse hoje, teria passado adiante, imaginando tratar-se de um mais uma pseudo-obra de auto-ajuda de qualidade literária tão duvidosa quanto a intenção. Mas como naquela época toda a "literatura" de auto-ajuda limitava-se a "Como Conquistar Amigos e Influenciar Pessoas", não titubeei.

A ARTE DE AMAR

Que tivesse alguma relação com o Kama Sutra nem me passou pela cabeça, até porque naquele tempo uma guria de 15 anos normalmente nem tinha noção dessas coisas: as que já tinham beijado eram "experientes" e, devo confessar, olhadas com alguma desconfiança pelas demais.

De qualquer forma, peguei o livro e dei uma folheada rápida: não tinha nada pra fazer naquele dia a não ser estudar pra uma prova de matemática na qual eu sabia que ia me dar mal.

Folheei ali mesmo, em pé junto à estante. Então fui sentando, e embalada pela ternura da voz que sussurrava aos meus ouvidos, me aconcheguei no sofá ainda longe de imaginar que aquele momento teria conseqüências perenes, que aquela voz haveria de me acompanhar, de guiar meus passos pelos anos seguintes e, quem sabe, até o último de meus dias.

Já lá me surpreendeu a atualidade da visão daquele homem, que há então mais ou menos uns 20 anos atrás via o mundo exatamente como se descortinava ao meu redor. Mal imaginava, no entanto, que tal visão continuaria atual ainda hoje, com toda a complexidade que a tecnologia e as novas formas de produção acrescentaram à vida do ser humano.

À Arte de Amar, seguiram-se o Ter ou Ser, O Medo à Liberdade, O Coração do Homem, a Anatomia da Destrutividade Humana, O Conceito Marxista do Homem e, finalmente, Meus Encontros com Marx e Freud. A bibliografia vai bem mais além, mas esses foram os livros que li e que me abriram os olhos e o coração de muitas formas, reforçando a crença de que sim, a humanidade é uma criança muito doente mas, sim, definitivamente tem cura, e esta cura começa no indivíduo, em cada um de nós; em simplesmente aprender a amar sem esperar resposta, resultado ou conseqüência, apenas amar e, finalmente, entender os versos de Drummond:

Que pode uma criatura,
senão entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

Erich Fromm me salvou do niilismo, me permitiu sobreviver ao desafio de Schopenhauer e Kierkegaard - que só recomento aos fortes de espírito -, com essa fé não só inabalada, mas fortalecida.

Mas, acima de tudo, ele abriu para o meu adolescente coração as portas da poesia e do verdadeiro sentido do verbo "Amar".

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