Como hoje é domingo, segue uma historinha mais extensa. Se verdadeira ou não, há controvérsia. O protagonista de fato existiu e seu nome é conhecido ainda nos nossos dias.
É uma história de fibra e perseverança - virtudes infelizmente encontradas da inversa proporção de sua necessidade neste mundo imediatista em que vivemos.
Segue a história:
Desde o nascimento, Matajuro carregava a responsabilidade de um dia suceder ao pai, chefe do clã dos Yagyu, uma renomada linhagem de mestres da katana. Desde cedo, no entanto, sua preguiça obscureceu o talento ameaçando impedir que viesse a atingir seu potencial. Na tentativa de sacudí-lo dessa letargia, o pai o baniu do dojo.
A punição o atingiu em cheio, e Matajuro deixou a casa paterna determinado a dominar a arte da defesa mesmo que só para mostrar ao pai o quanto estava errado. E saiu pelo Japão a procurar um mestre à sua altura.
Ao percorrer a província de Kii, uma região montanhosa conhecida por suas 48 cachoeiras, ouviu falar de um renomado mestre de habilidades incomparáveis que viveria próximo ao santuário de Kumano Nachi, um dos mais antigos do Japão.
Chegando ao santuário, os monges indicaram que seguisse uma trilha pela densa floresta, ao final da qual, segundo os monges vivia um heremita senil chamado Banzo que se dizia ter sido em seus dias um grande mestre na arte da katana.
Seguindo a indicação dos monges, Matajuro embrenhou-se pela mata avançando com dificuldade até chegar a uma pequena choupana. Mesmo não vendo ninguém, anunciou em voz alta:
- Eu vim aprender a arte da katana. Quanto tempo demorará?
- Dez anos. - anunciou uma voz rouca por trás da porta fechada.
- É muito tempo. - Matajuro sacudiu a cabeça - E se eu trabalhar em dobro e praticar duas vezes mais?
- Vinte anos - foi a resposta.
Ao ver para onde a conversa levava, Matajuro sabiamente deixou de argumentar pedindo simplesmente ser tomado como aprendiz, tendo imediato consentimento de Banzo.
Mas foi um aprendizado peculiar: Matajuro foi proibido de sequer tocar na katana ou mesmo falar em defesa. Ao invés disso, foi posto a trabalhar cortando madeira, cozinhando, lavando roupas e limpando a cabana numa jornada que se estendia do amanhecer até altas horas da noite. Banzo raramente lhe dirigia a palavra e em momento algum referiu-se à kenjutsu.
Um ano havia se passado, e Matajuro crescia em frustração suspeitando que havia sido enganado para tornar-se criado de um velho demente. Certa manhã, ele cortava a lenha com raiva chegou a decidir ir buscar o aprendizado com outro mestre. Com certeza haveria dezenas de mestres que se sentiriam muito honrados em tomar um membro do clã dos Yagyu como aprendiz, concluiu com amargura ao ver a pilha de madeira ainda por ser cortada, e enterrou a lâmina do machado com fúria, como se naquele gesto encontrasse cura para seus problemas. Não reparou que não estava sozinho até sentir-se jogado de encontro à pilha de madeira por um golpe violento. Confuso, olhou ao redor, para ver o velho mestre brandindo uma vara de bambu verde sobre sua cabeça. Sem uma palavra, Banzo deu-lhe as costas e desapareceu na mata silenciosamente como surgira, deixando que Matajuro pensasse que estava sendo punido por faltar com suas tarefas.
Seu sangue samurai envergonhou-se de resvalar em suas responsabilidades, mesmo planejando deixar o velho louco. Levantando, Matajuro acabou de rachar a lenha, decidindo que sua próxima tarefa, a última daquele dia, haveria de ser executada com tanto esmero que o mestre não acharia a menor falta em seu trabalho. Assim, algumas horas depois, quando esfregava as roupas próximo à cachoeira, Banzo atacou novamente, jogando Matajuro dentro d'água:
- Você deseja aprender a kenjutsu, mas não consegue desviar do golpe de uma vara de bambu! - zombou o velho.
O orgulho aristocrático de Yagyu Matajuro foi mais uma vez inflamado. E do jeito como deixara a casa paterna prometendo só voltar quando pudesse provar ao pai o grande espadachim que se tornada, Matajuro decidiu ficar no santuário de Nachi para provar ao velho que estava errado.
Assim decidido, começou a se concentrar: independente do que estivesse fazendo no momento, preparava-se para um ataque surpresa. Banzo atacou cinco vezes ao dia, então dez, então vinte; sempre quando seu aprendiz estava ocupado com outra coisa. E era tão silencioso que o único alerta seria o farfalhar do manto ou o sibilar da vara de bambu cortando o ar. Semeando o jardim, lavando nas cataratas, consertando o telhado da cabana; Matajuro estaria sempre ocupado com uma tarefa ou outra, preparado para saltar ao menor ruído assim evitando mais e mais golpes dirigidos a ele.
Quando Banzo constatou que já não conseguia sequer tocar o pupilo com a vara por vários meses, mudou de estratégia: em adição aos assaltos diurnos, começou a atacar Matajuro enquanto este dormia.
O jovem precisou redobrar seus esforços, aprendendo a ter um sono leve, com o subconsciente sempre em alerta. Amargamente constatou que quanto mais bem sucedido era em evitar a vara de bambu, mais frequentemente esta o buscava: setenta, oitenta, cem vezes ao dia e à noite, o mestre irromperia como um fantasma para atacar. Mas era cada vez mais difícil para Banzo flagrá-lo num momento de desatenção, pois os instintos do jovem já se achavam aguçados num nivel quase sobrenatural.
Certa noite, quatro anos depois de ter chegado ao santuário, Matajuro estava preparando um chirashizushi, um cozido de arroz e vegetais. Pelava cuidadosamente um ramo de bardanas quando Banzo surgiu às suas costas. Sem deixar cair os vegetais ou erguer-se da posição de cócoras em que se achava junto ao fogo, Matajuro arrebatou a tampa de um vaso defendendo-se com a mão livre para continuar cozinhando tranquilamente.
Naquela noite, Banzo o presenteou com um certificado de proficiência na arte da defesa e uma antiga katana. Matajuro já não precisava de nenhum dos dois. Sem ter tido uma lição formal sequer, e jamais tendo empunhado uma arma, havia atingido o mais alto nível do bugei: era um mestre do zanshin.
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