26 de mai. de 2013

CARTA À MULHER NO SUPERMERCADO


Prezada Maria Ninguém,

Falo a você que ontem aguardava na fila do pão com um menino e um carrinho de compras vazio, ocupando o espaço de quatro pessoas e bloqueando o acesso às cestas de pães especiais no supermercado.

Quem escreve é a mulher cujo pedido de licença você fez questão de ignorar, lembra? Aquela mulher de boina cinza, que após hesitar parecendo perplexa afastou seu carrinho murmurando um pedido de desculpas para alcançar o pão - o que aparentemente muito a divertiu.

Lembra agora?

Acredito que sim, porque o momento serviu como afirmação num mundo indiferente à sua presença; então você retornou ao apartamento anônimo e escuro, esperando o marido voltar depois de passar a tarde com os amigos, para se jogar no sofá assistindo o futebol, justo na noite de sábado quando tudo acontece nas novelas.

Sinto muito se sua vida não é sombra do que poderia ser, e aparentemente tudo que lhe resta é contar os quilos que a separam da falência como objeto de atração; se tudo que lhe cabe decidir é a cor do esmalte ou da blusa que vai vestir e se o afeto que veio bater à sua porta esfriou e hoje é mal-requentado entre uma briga e outra pelo dinheiro gasto no carro com que você contava para consertar a pia da cozinha.

Sinto muito se a definição de amor que você conhece é transmitida por canal aberto para ocupar seus sonhos e todas as outras mulheres deste país.

Sinto muito se você acorda todos os dias para fazer as mesmas coisas sem saber porquê, e vez por outra tem vontade de gritar por nada e quebrar alguma coisa; se vive ansiando por mudanças enquanto faz das tripas o coração para que tudo siga exatamente como está.

Sinto muito se sua mendicante auto-estima só se alimenta das migalhas do escárnio dedicado a pessoas a quem as circunstâncias colocam numa posição que seu senso distorcido de realidade entende como inferior.

Sinto muito se vivendo na primitiva hostilidade dos berros e da grosseria insensível, você entenda como fraqueza qualquer gesto de educação, de consideração; por pequeno e impessoal que seja.

Sinto muito por tudo isso, e por tudo que não sei.

Escrevo em agradecimento, pois mesmo despropositada você me ensinou gratuita e anonimamente várias lições.

Sim, estou em débito, pois, enfim, nosso breve intermezzo mostrou que ainda tenho muito a percorrer para me livrar de sentimentos negativos como a raiva, a vaidade, o orgulho e a soberba entre tantos outros.

Mas o quê ensinei a você?

Deixei o supermercado pensando, e sigo pensando até agora no ocorrido; buscando entender porquê o desprezo de uma pessoa totalmente estranha me atingiu a ponto de me fazer parar e pensar.

E pensando identifico em mim os pontos sensíveis, as feridas - algumas de longa data; e nisso encontro a cura que me leva ao crescimento como pessoa.

Foi nesse pensar por exemplo,  que flagrei minha soberba em ação.

Porque, confesso, na fração de segundo em que nossos olhares se cruzaram tive de você todas as impressões reveladas no começo desta carta: a vi como uma alma triste, perdida, machucada, ignorante e infeliz; enfim, um ser digno da minha compaixão.

Como meu rosto costuma espelhar meus pensamentos, tudo isso certamente transpareceu. Minha soberba, portanto, antecedeu o seu escárnio. É bem provável que tenha sido exatamente o que o causou.

Como não a conheço nem de nome, tudo que inferi sobre sua vida decorre de preconceituosa especulação.

Estou ciente disso, e empenhada em me corrigir.

Quanto a você, não sei. Não posso dizer. Não a conheço.

Talvez esteja agora pensando que não teria custado nada dizer um "pois não" e afastar o carrinho. Não precisava nem olhar.

Talvez não. Talvez tenha dado de ombros e deixado de lado o assunto. Tanto faz: só diz respeito a você.

De minha parte, peço perdão e, creia-me, da próxima vez que algo similar ocorrer seja com você ou qualquer outra pessoa; vou empurrar o carrinho para fora do meu caminho sem olhar nem pedir licença e seguir a vida, pois também aprendi que ignorar a existência do outro evitando qualquer contato visual é o signo moderno da consideração.

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