10 de mar. de 2017

PRECISAMOS FALAR SOBRE O NARCISISMO - PARTE VII: NENHUM REMORSO


Uma pessoa pode apresentar comportamentos tóxicos sem ser necessariamente uma pessoa tóxica. A diferença entre "comportar-se como" e "ser"se mede pela capacidade de perceber o prejuízo que causa aos demais, demonstrar remorso autêntico e se esforçar de fato para corrigir tais comportamentos.

O narcisista é incapaz disso: ele cria o caos e culpa os outros. Se chega a admitir um erro, o faz como estratégia para manter a boa vontade da outra pessoa podendo até prometer corrigir-se, e simular pedidos sinceros de ajuda ao ofendido, para tão logo se sinta seguro, não só abandonar todos os esforços retomando o comportamento tóxico anterior ao conflito, como transferindo ao outro a responsabilidade e empenho em "consertar" a situação e cuidando de responsabilizá-lo não só direta e pessoalmente, como perante terceiros, podendo até recorrer à Justiça buscando "reparação".

Quanto mais grave for a ofensa por ele cometida, mais ofendido se mostrará com a vítima. Isso porque além de ser incapaz de admitir os próprios erros, ele projeta seus próprios nos outros: se explora financeiramente uma pessoa ela é que o está explorando; quando  trai seu parceiro, o faz porque está sendo traído; se abusa dos favores, é porque está sendo abusado e não há prova ou argumento capaz de fazê-lo ver a realidade.

Até porque tentar trazer à razão um narcisista pelo diálogo é como falar por um telefone sem fio: por mais que seja claro e objetivo, o narcisista reage como se você tivesse falado outra coisa completamente diferente. Você diz "pedra" e o narcisista entende "pau". Você pode repetir "pedra", explicando e demonstrando sua aparência e constituição física. O narcisista então dirá: "todo mundo está sabendo que é um pau, só você é burro de não ver e insiste em usá-lo como uma pedra". Diante da sua persistência, muitas pessoas intelectual e/ou emocionalmente frágeis começam a duvidar de si mesmas, dos próprios olhos e ouvidos e acabam pedindo desculpas. Outras, achando que não vale a pena discutir, decidem deixar para lá.

Esse "telefone sem fio" com inversão de culpa se chama gaslighting, e é entendido como uma estratégia de manipulação que cria uma cortina de fumaça, distraindo o oponente do foco da discussão ao mesmo tempo que o leva a duvidar dos próprios sentidos e cognição.

Assim entendemos porque partimos de um princípio de realidade que admite objetivamente não só a existência como a autonomia das outras pessoas.

Explico: toda a forma de manipulação parte do pressuposto de que o outro existe e está ali como um indivíduo autônomo cuja vontade queremos dobrar. Se não acreditássemos nisso, não haveria necessidade de divisar estratégias que o induzam a agir conforme nossas vontades ou expectativas. Essa noção é fundamental no que se chama "princípio de realidade". Só que o narcisista não atingiu esse estágio evolutivo.

Embora desfilem pelo mundo agindo e discursando como as pessoas mais racionais e maduras, emocionalmente os narcisistas seguem paradoxalmente presos à noção primitiva de um "eu" não individualizado, mas fundido todo o resto. Seus esforços naturais de diferenciação e autonomia foram sequestrados, de forma que sua personalidade não se formou amalgamando predisposições genéticas, experiências, sensações e influências para formar um todo ao qual novas experiências vão se juntando e redefinindo ao longo do tempo. Ela foi, sim, estilhaçada sob a pressão das expectativas do seu ambiente de origem para encaixar no molde que lhe era destinado: os fragmentos julgados "bons" foram consistentemente isolados e elevados à condição de definidores do próprio ser do narcisista ao mesmo tempo que os "ruins", julgados inaceitáveis, foram rechaçados e recalcados a ferro e fogo, resultando numa espécie de golem de aparência impressionante, mas essencialmente artificial.

Como se não bastasse, esse ambiente essencialmente opressor mostrou-se também perverso, pois os próprios elementos de referência se isentaram de prover eles próprios o exemplo prático das atitudes e comportamentos que exigiram da criança, ainda por cima usando insidiosamente do vexame e da humilhação como formas de punição.

A questão é que, como bem apontou Jung, queira ou não todo ser humano tem um lado obscuro ou uma "sombra", como ele próprio denominou. É nela que arquivamos e seguimos acumulando os rancores, raivas, frustrações, angústias, ressentimentos e todos os sentimentos e impulsos "negativos", junto com os aspectos ou vieses que desprezamos ou julgamos inaceitáveis em nós mesmos. Esse caldo de hostilidades vive em constante ebulição no inconsciente de todos, sem exceção. Ainda segundo Jung, enquanto não nos tornarmos conscientes e lidarmos com nossas próprias sobras, elas seguirão nos assombrando, materializando-se em pessoas ou circunstâncias que as reflitam de volta para nós.

Paralelamente a isso, suficientes pesquisas já comprovaram que a noção de justiça é integra a programação genética do ser humano: bebês de colo protestam tanto ao se verem alvos como ao perceber injustiças cometidas a terceiros.

Tendo tudo isso em mente, podemos começar a entender a dimensão da sombra carregada desde cedo pelos narcisistas e desenvolver alguma noção dos mecanismos inconscientes que lhes permitem ignorar completamente a presença de conteúdos negativos em si mesmos, projetando-os nos outros com tanta obstinação. 

Cada pessoa com quem o narcisista trava contato não é por ele percebida dentro do contexto específico daquele momento não como um indivíduo, mas como um golem personificando um dos conteúdos do seu próprio inconsciente. Se percebe o contexto da interação como "positivo", ele vê o outro como um golem benigno; se negativo, como maligno independente do histórico das interações entre ele e cada pessoa.

Por isso, mesmo que olhe, toque e se dirija a você, não é você à luz da sua história pessoal e de de tudo que ambos vivenciaram juntos que ele vê, mas a parte específica de si mesmo que as suas atitudes estão evocando naquele exato contexto. Parece maluco, e de certa forma o é. Imagine viver só "no momento" e terá como consequência os dois extremos: o Buda iluminado cuja noção de "eu" engloba o "todo", e o narcisista que é exatamente o oposto: um "eu" que se afirma pela negação do "todo". 

O narcisista é impermeável ao sentimento de remorso porque, em última instância, tudo que faz é direcionado e si mesmo e as consequências de suas ações habitam o vácuo representado pelas vidas dos outros cuja existência desconhece, já que nada existe ou persiste fora do seu campo de percepção. Não é que o narcisista "decida ignorar": ele é de fato incapaz de extrapolar qualquer dimensão humana fora do espectro limitado e limitante das suas projeções. O universo do narcisista não é real, objetivo, linear, lógico e causal conforme o percebemos; mas uma Ilha da Fantasia povoada por mínions onde ele reina onipotente, onisciente e onipresente.

Quando insulta e ofende a sua honra, por exemplo, o narcisista está apenas usando-o como um receptáculo da cólera que sente para consigo mesmo naquele momento. E aqui deixo uma dica preciosa para o momento que alguém se ver injustamente acusado por um narcisista: suas acusações costumam revelar exatamente o que ele próprio está fazendo às escondidas.

Por ofensivo que consiga ser, nada do que o narcisista faz ou deixa de fazer nesta vida tem a ver com qualquer um, além dele mesmo. As pessoas que cruzam o seu caminho são hospedeiros temporários para suas próprias facetas. Se o agradam, são boas, ótimas, excelentes, as melhores do mundo. Se o contrariam são más, péssimas, incompetentes, as piores do mundo. E esses  julgamentos são tão fluidos como circunstanciais: a pessoa maravilhosa de ontem é o hipócrita de amanhã não por ser consistentemente uma pessoa assim ou assado, mas por ter cedido ou negado um agrado ou favor.

Obviamente sua irresponsabilidade pessoal não os isenta da culpa. Muito mais que passar a mão pela cabeça e sentir pena dos "coitadinhos", o que eu pretendo aqui é ajudar você a compreender os mecanismos psicológicos que permitem a essas pessoas cometer maldades e se mostrar ultrajadas quando confrontadas com as consequências.

Se devidamente endereçado antes da idade adulta, o narcisismo pode ser contido de forma a não evoluir para a malignidade. Dificilmente será erradicado, mas com os devidos cuidados e atenção de terapeutas especializados, pode ficar limitado às formas mais brandas com as quais é possível conviver, estabelecendo vínculos afetivos em contextos relativamente benéficos.

O indivíduo com tendências narcísicas sempre será mais refratário às críticas do que a média das pessoas, e seguirá criando intrigas e manipulando os outros para obter alguma vantagem pessoal; mas pelo menos o fará dentro do princípio de realidade, aceitando alguma responsabilidade sobre suas ações e será, pelo menos, capaz de sentir remorso pelos danos que sua conduta porventura vier a causar - por mais que relute em admiti-lo publicamente.

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