5 de mar. de 2017

PRECISAMOS FALAR SOBRE O NARCISISMO - PARTE IV: AMOR EM TRÊS ATOS


Para todos os narcisistas, sem exceção, o amor é uma peça em três atos: paixão, desvalorização e descarte. Independente da religião, formação, nível cultural, econômico, formação, histórico familiar ou qualquer outro fator, narcisistas em todo o mundo seguem à risca esse roteiro como autômatos dotados de uma programação prévia. O que varia é o tempo, a intensidade e o estrago que deixam para trás.

As etapas desse ciclo são objeto de várias publicações especializadas e sua regularidade pode ser atestada na leitura dos relatos feitos por homens e mulheres do mundo inteiro em fóruns e grupos online de ajuda mútua. Em centenas de canais no Youtube que tratam exclusivamente do assunto, indivíduos das mais diversas nacionalidades dão seu testemunho, com por milhares de visualizações.

A maneira como o narcisista se relaciona emocionalmente é tão regular e estereotipada que procurar pelo código de barras com os dizeres Made In China já virou piada entre as pessoas que conseguiram se recuperar o suficiente para ver algum humor na situação.

Fase 1: Não sei viver sem você

É o chamado love bombing (bombardeio amoroso), caracterizado pelo foco excessivo na relação: a troca constante de mensagens (narcisistas preferem SMS, Whatsapp e outros aplicativos de troca de mensagens a telefonemas porque não permitem que a outra pessoa desconfie de seu paradeiro) a ponto de atrapalhar a vida profissional, familiar e social de seus alvos com um verdadeiro bombardeio de declarações e emoticons que objetivam na verdade mantê-lo informado sobre quando, onde e na presença de quem está a outra pessoa a cada momento do dia. Mais que uma demonstração de afeto, essas mensagens são um exercício de poder, de controle. E a prova disso é que o amoroso e atencioso narcisista reage com mágoa e acusações caso a pessoa ignore suas mensagens ou peça para restringi-las de alguma forma.

Flores, bombons, cartões, fotografias e visitas inesperadas com convites irrecusáveis para um jantar, um passeio, uma noitada ou um show também fazem parte do arsenal. À pessoa enlevada por ser alvo de tanta atenção, não passa pela cabeça que esses não são gestos espontâneos, mas movimentos táticos deliberadamente planejados para minar qualquer dúvida ou suspeita ao mesmo tempo que colocam o narcisista na posição de "credor" da relação - uma continha que ele (ou ela) mantém metodicamente para cobrança posterior.

Nas longas conversas íntimas que os casais costumam ter no começo dos relacionamentos, o narcisista fala muito de suas conquistas, seus bens, seu status, seus amigos e seu estilo de vida, planos, sonhos e projetos. Seu passado e família são perfeitamente felizes e resolvidos, mesmo que ao conhecê-los se tenha uma impressão completamente diferente. Na eventualidade de relatar algum momento emocionalmente carregado, o narcisista sempre se retrata como uma vítima heroica de algum engôdo ou conspiração.

Esta primeira fase da relação com um narcisista é tudo que se lê na literatura romântica sobre as "almas gêmeas": a intimidade se estabelece rapidamente com o narcisista ocupando o centro da vida da pessoa em questão de poucas semanas. As emoções são intensas, os sentimentos exacerbados e as brigas costumam ser tão épicas quanto as reconciliações. É o famigerado "entre tapas e beijos": quando tudo está bem é o paraíso, mas "qualquer desatenção, faça não, pode ser a gota d'água".

O love bombing via de regra coincide com a transição da desvalorização para o descarte da relação na qual o narcisista já se achava envolvido no momento que reconheceu na nova pessoa um alvo potencial para subtrair atenção, recursos, favores e, de quebra, prover alguma vantagem competitiva nas "negociações" com o desesperado parceiro da relação "oficial", e o desfecho do triângulo amoroso por ele criado vai depender do quanto parceiro 1 e parceiro 2 estiverem dispostos a ceder e conceder. Em muitos relatos que li, a situação se arrastou por décadas, e em vários casos só se resolveu pela introdução de uma quarta pessoa no drama - ou pelo próprio narcisista ou por alguma das outras partes.

Quanto mais intenso, dramático e sofrido for esse triângulo para os outros envolvidos, mais o narcisista lutará para mantê-lo, porque o drama alheio por sua causa é a cocaína do narcisista.

Fase 2: Você não me entende, você não entende de nada, você não é nada sem mim

As críticas que já vinham se insinuando na fase do love bombing se tornam mais ácidas e frequentes. Arregaçando as mangas, o narcisista dá mostras de quem é e para que veio: nada é suficientemente bom, nada está à sua altura, não era nada disso que ele queria. Por mais que se esforce, o parceiro está sempre aquém das expectativas. Sua família é medíocre ou desajustada, seus gostos banais, seus amigos interesseiros, seu trabalho insignificante ou mal-remunerado... pouco a pouco todo e qualquer interesse do parceiro que não envolva o narcisista é insignificante e não merece nenhuma prioridade.

Ao mesmo tempo que deprecia as mesmas qualidades que pareceram atraí-lo em primeiro lugar, o narcisista passa a ostentá-las como se fossem parte da sua própria natureza: se o parceiro é uma pessoa extrovertida, é assim que o narcisista começa a se comportar mesmo tendo se mostrado retraído até então. Se o parceiro é uma pessoa generosa e preocupada com causas sociais, o narcisista passará a se comportar como um paladino nessas questões. E sempre será mais, maior e melhor do que o parceiro. E o que quer que não consiga superar, o narcisista desvalorizará não poupando esforços em demonstrar ao parceiro como suas habilidades ou talentos são limitadas, o que faz tanto através de comparações como sugerindo objetivos inatingíveis sem uma considerável curva de aprendizado - para logo depois criticá-lo por buscar dar passos maiores que suas pernas.

Tudo isso já havia sido insinuado durante o love bombing, mas de maneira sutil ou jocosa, através de piadinhas comparações ou comentários en passant que o parceiro preferiu ignorar para não criar caso. Porque desde o primeiro instante, o narcisista se empenhou em minar os limites do parceiro ao mesmo tempo que fixava e avançava os seus.

Você acha que tem pernas para usar esse vestido curto?, perguntará "inocentemente" o narcisista para assim que se virem na rua passar a olhar ostensivamente as pernas de toda e qualquer outra mulher de mini-saia. A cobrança do livro-caixa do relacionamento que ele vinha mantendo desde o primeiro instante começa a ser cobrada: eu desperdicei trezentos Reais naquele jantar só porque você insistiu naquele restaurante!, argumentará para não se comprometer com o pagamento do aluguel. Os exemplos dessa lógica do absurdo são tantos quantos narcisistas existem no planeta: o importante é observar como a balança pende sempre para o lado do narcisista a despeito de todos os esforços do parceiro: na eventualidade de lavar um prato, o narcisista passará a agir como se fosse a única pessoa que faz isso diariamente.

Se o parceiro teve a sensatez e bom senso de manter o vínculo com amigos e família bem como uma fonte de renda própria e independente do narcisista, todos serão alvo de críticas e desvalorização constantes. Muitas pessoas acabam abandonando amigos, família e emprego na vã tentativa de trazer de volta o paraíso do love bombing. Mas a solução é temporária, porque o narcisista logo passará a criticá-la justamente por ter abandonado amigos e familiares e/ou largado o emprego de que ambos tanto precisavam para sobreviver.

Mais uma vez, as circunstâncias variam, mas a sensação de estar no mato sem cachorro com o narcisista é igual para todas as "vítimas". E quanto mais se esforçarem para manter a relação, menos o narcisista se empenhará e mais distante se tornará. A essa altura, as saídas com os amigos e os compromissos se tornarão frequentes, ao mesmo tempo que o narcisista passará longas horas online. O foco obsessivo que parecia ter no parceiro agora se distribui entre uma enormidade de novos "contatos": insatisfeito com o parceiro menos que perfeito, o narcisista começa a buscar alternativas e seu círculo social se expande em proporção geométrica ao encolhimento do círculo do parceiro que já não tem ânimo nem para visitar os próprios familiares e se o faz, o narcisista não o acompanha ou se o acompanha o faz contrariado mostrando-se distante ou abertamente descortês. Isso acontece sempre que o narcisista falha em aliciar amigos e/ou familiares para com eles tecer a rede de intrigas que usa para afastar o parceiro das pessoas que lhe provêm suporte emocional.

Se o narcisista for bem sucedido em aliciar flying monkeys (macacos voadores - a expressão vem do filme O Mágico de Oz), laços e relações construídos ao longo de vidas inteiras correm o risco de ser irreparavelmente rompidos, com ressentimentos antigos que se julgavam resolvidos sendo reavivados e levados ao ponto de ebulição.

Esse purgatório se estende até o narcisista finalmente encontrar um reserva que corresponda a suas expectativas, tendo já testado e comprovado a flexibilidade de limites de que precisa para o clímax da relação que mantém com o parceiro-titular. Porque o clímax para o narcisista não é a descoberta do outro, mas a sua destruição.

Fase 3: eu nunca sequer gostei de você

O descarte vem como uma tempestade de verão: o dia amanhece com céu de brigadeiro e de uma hora para outra, a tempestade desaba: existe aquela outra pessoa com quem o narcisista já está envolvido até o pescoço. Ele até pode alegar em sua defesa que foi uma noite só ou que nem fez sexo com ela, mas é mentira: a "relação complicada" corre a pleno vapor com o narcisista prometendo mundos e fundos à terceira parte. O parceiro até pode se julgar esperto por ter "descoberto" sobre o affair, mas isso não poderia estar mais longe da verdade, porque assim como o serial killer planeja e executa minuciosamente cada homicídio como num ritual, o narcisista planeja e executa o descarte de forma que o parceiro desconfie e descubra a traição onde e quando ele decidiu. O celular (sempre bloqueado) que o acompanhava até no banheiro não foi "esquecido" na mesa da sala aberto justamente na troca de mensagens entre ele e seu affair, mas deixado de propósito para o parceiro ler, descobrir tudo e ainda ser acusado de invadir a privacidade ou não confiar no narcisista.

Confrontado, o narcisista não só não admitirá responsabilidade alguma sobre o ocorrido como tentará reverter a culpa, e qualquer argumento servirá nesse momento, e quanto mais absurdo, descabido ou despropositado melhor, já que o objetivo é desviar o foco da discussão, passando de acusado a acusador. Não raro, o narcisista acusará o outro por palavras, atitudes ou comportamentos que ele próprio costuma apresentar. Tentar ater-se à questão em foco é extenuante, demanda uma vontade férrea e uma alta imunidade a abusos verbais. E mesmo no fim de tudo isso, terá se voltado à estaca zero, porque o narcisista não discute para buscar um ponto em comum, mas sim para vencer, prometendo se necessário o que não pretende absolutamente cumprir.

Como o serial killer, narcisista tentará estender o máximo a carga emocional desta fase, e dependendo da conivência dos parceiros titular e suplente, pode chegar a estendê-lo por anos a fio, envolvendo a todos numa teia de ciúmes, ressentimentos e intrigas a fim de manter os parceiros titular e suplente competindo constantemente por sua atenção. Intrigas e mentiras deslavadas não são poupadas e se amigos e familiares se envolverem nesse caos, tanto melhor.

Aliás, no que tange a amigos e familiares, ainda antes de definir um novo suplente, o narcisista já vinha cuidando de minar a reputação e credibilidade do parceiro titular, queixando-se e inventando histórias mirabolantes para amigos e familiares, e assim preparando o terreno para que não só não encontre apoio como seja criticado e ridicularizado por esses no auge do descarte, que é quando as pessoas costumam perder a cabeça, tomando atitudes irracionais rodando a baiana, quebrando coisas ou publicando insinuações quando não insultos diretos nas redes sociais.

Li relatos de primeira mão em fóruns de ajuda mútua que se alguém me contasse, jamais acreditaria. São dezenas de indivíduos presos em relações altamente tóxicas, em círculos viciosos com direito a chantagens e baixarias inomináveis que parecem incapazes de romper por iniciativa própria. Por mais que se apontem alternativas viáveis, essas pessoas parecem não conseguir reunir a motivação necessária para romper voluntariamente o ciclo do abuso e reconstruir suas vidas longe do narcisista.

Para estender o máximo possível essa etapa, mesmo depois do parceiro ter deixado bem claro que considera encerrada a relação e não tem o menor interesse em reatá-la, o narcisista usa do hoovering (pairar, em inglês), o bom e velho "sentar mosca": emails, mensagens, "encontros inesperados" de forma mais ou menos insidiosa, sempre dependendo da qualidade e quantidade de favores objetivos  subjetivos que tenciona subtrair de ambos os lados, porque a essa altura o suplente já ocupa a tão esperada titularidade e enquanto ele celebra o "grande amor" com amigos e familiares nas redes sociais, o narcisista manobra secretamente para manter o ex-parceiro no banco de reservas, para alguma eventualidade, ao mesmo tempo que cuida de plantar dúvidas quanto à sua reputação e intenções, para desacreditá-lo caso canse da brincadeira e resolva abrir a boca.

Não existe prazo de validade para a condição de "reserva técnica" na vida de um narcisista, e sempre que julgar oportuno ou necessário, ele buscará uma brecha para voltar a se insinuar na vida da pessoa.

É por isso que tendo identificado um narcisista em sua vida - com as devidas diferenças, esses três estágios também se aplicam a amizades e relações de trabalho -, o melhor a fazer é afastar-se e bater a porta sem deixar nenhuma fresta. Há duas "técnicas" para isso, que descreverei em outro post: o no contact (nenhum contato), que consiste basicamente em erradicar o narcisista e todas as suas ramificações de sua vida, e o grey rock (pedra cinzenta), que precisa ser aprendido e posto em prática quando não é possível afastá-lo completamente.

Seguir sendo "amigo" de um narcisista depois de terminar a relação (seja de amorosa, de amizade ou trabalho) é tornar-se um voluntário na linha de frente de conflitos, dramas e sofrimentos não só dispensáveis como contraproducentes. Se você foi vitimado por um narcisista é porque não tem em si a malícia necessária para enfrentá-lo num terreno que ele conhece como a palma da sua mão e até que se fortaleça e atinja a imunidade seguirá sendo um alvo fácil não só para ele, como para outros narcisistas.

E você só vai chegar a isso se ao invés de dedicar seu tempo e energias a expor ou vingar-se do narcisista, concentrar seu foco e atenção nas fraquezas que o tornaram suscetível a se envolver com alguém tão perturbado, encarando uma a uma e empenhando-se em corrigi-las, fortalecer sua auto-estima e, acima de tudo, aprender a se fazer feliz sem pedir licença a ninguém.

O narcisista nunca vai mudar e vai seguir incólume pulando de relação em relação. É assim que é e sempre vai ser, e caso tenha dúvidas, lembre como sua relação parecia perfeita aos olhos do mundo. Mas você pode mudar, você pode evoluir e fortalecer-se emocionalmente para encontrar a paz, o amor e a harmonia que merece nesta vida.

Um comentário:

  1. Olá! Antes de expressar minha gratidão por seu belo trabalho gostaria de dizer que ler seus textos é como estar diante de uma biografia minha, mesmo que não autorizada. É incrível o padrão "made in china" que narcisista usam é exatamente o mesmo modus oper andis para todos. Nunca havia encontrado conteúdo tão rico em outro lugar sobre isso. Parabéns e muito obrigado. Licença para divulga seu trabalho em outras mídias e grupos com seus devidos e merecidos créditos

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