6 de mai. de 2008

"DIFERENTE"




- Ela é... diferente... – o tom de voz da professora baixou para quase um sussurro enquanto as sobrancelhas perfeitamente delineadas a lápis se arqueavam sobre os olhos castanhos.

A palavra soou deslocada para mim. Aos 8 anos, entendia como diferentes um quadrado e um círculo, um cachorro e um gato, um carro e uma carroça. Isso, no entanto, não se aplicava a pessoas: em casa, na missa e até mesmo na escola fui ensinada que todas as pessoas são iguais sem excessão de sexo, cor, idade ou preferências políticas, esportivas ou sexuais.

- Somos todos iguais aos olhos de Deus. – repetia o padre nos sermões de domingo.

E eu acreditava piamente, sem excessões: dos amiginhos da rua aos ciganos, lixeiros, empregadas, carteiros, sorveteiros, amigos de meus pais... todos eram iguais.

Mas quis a professora que V fosse... diferente.

É claro que todos tínhamos há dias reparado que ela era magrinha como um fio de arame, que tinha um gênio danado e uma perna ligeiramente mais curta que a outra.

Mas, diabos... A A não era gordinha? O J não era certinho demais, quase batendo continência cada vez que era chamado? O B não era fedorento? E o que dizer do P, que vivia dando pum? Olhando um pouquinho mais de perto, todos nós éramos diferentes.

Lembro que passei o resto da aula olhando ao redor, descobrindo as peculiaridades de cada um: flagrei o C tirando meleca do nariz, olhando sorrateiramento ao redor e grudando embaixo da classe; a H fez xixi de novo nas calças (ela não tinha um rim, e esses acidentes viviam acontecendo); e a C gaguejava como a DKW da minha mãe ladeira acima...

Mas a V sentava bem retinha sempre na primeira fila, atenta, rápida e precisa levantando a mão ainda antes que a professora acabasse de perguntar enquanto o resto da classe se encolhia e olhava pros lados fazendo de conta que não estava nem ali.

Honestamente, se a V era diferente, pra mim é só porque era mais esperta que a maioria de nós.

Mas assim não pensava o resto da turma. Na verdade, acho que ninguém mais pensou no caso: simplesmente seguiram no pé da letra o que dissera a professora.

E faziam concessões.

Se a V beliscava, ninguém reclamava:

- Ela é... diferente.

Se a V furava a fila, ninguém falava:

- Ela é... diferente.

Se a V xingava, ninguém retrucava:

- Ela é... diferente.

O tempo foi passando, até a fatídica tarde em que nossos caminhos se cruzaram numa mesa de ping-pong.

- Xiripa! – gritei vitoriosa.

- Não foi! – protestou V não querendo admitir a derrota.

- Foi, sim! – insisti.

- Não foi, não, sua mentirosa! – os dentes branquinhos rosnaram pra mim.

- Retira!

- Não retiro, não: mentirosa! Mentirosa! Mentirosa!

A expressão é “deu um branco”, mas pra mim foi vermelho. E esse vermelho só se dissipou ao ver o fio da mesma cor que começava a correr pelo nariz da V, espremida no chão sob meus joelhos.

Foi uma surra e tanto.

Mas não foi na V que eu bati.

Hoje, passados quase 40 anos sei que naquela tarde, no pátio da escola essa menininha de 8 anos deu uma uma bela surra no preconceito que cria aleijões morais e emocionais; na perversão do culto à perfeição física; na hipocrisia do asco sublimado em pena que encapsula em redomas de isolamento e alienação social, condenando ao ostracismo indivíduos plenamente hábeis e capazes de compensar criativa e positivamente as limitações impostas por uma fatalidade, silenciando em cuidados seu direito primordial à igualdade.

No mais, peço desculpas à V pela surra.

Eu devia ter batido na professora.

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