7 de fev. de 2014

LEMBRANÇA INVENTADA



SE ME ALEMBRO BEM...

Era a senha.

As mãos trêmulas, de dedos nodosos e enrugados tateavam incertas os bibelôs na cristaleira, perfilados como recrutas diante da bandeira a tremular nos embaçados olhos descoloridos.

Com um suspiro, nos resignávamos, tamborilando dedos, rolando os olhos e distraindo os ouvidos com qualquer som que viesse de fora da janela.

Alheias à nossa falta de respeito, as pupilas cintilavam ao encontrar o objeto da súbita erupção mnemônica. A pele amarelada e áspera se fazia aveludada percorrendo carinhosamente cada minúcia do intrincado crochê enfeitado com miríades de miçangas coloridas.

Cada lembrança ele guardava assim. E a cada invocação, perdia-nos em devaneios acrescentando pontos e firulas.

Com o passar dos anos, os pequenos bibelôs se tornaram irreconhecíveis; e a coleção tão extensa, tão complexa, que ao buscarmos em nossas próprias lembranças não os associávamos mais.

Descuidamos dos sinais: o tatear incerto se fez trôpego, os nomes que se confundiam, as miçangas e crochês trocando de tempo e lugar.

E as pupilas baças... Ah, antes tivéssemos reparado! Mas não, mais preocupados em seguir os ponteiros do relógio do que as filigranas da sua narrativa, deixamos de reparar em como voltavam-se cada vez mais para dentro; e no quanto lhes custava retornar.

Ocupados em adornar nossos próprios bibelôs, nem reparamos quando os crochês e as miçangas desapareceram.

Então foram-se os bibelôs, e ele calou.

Hoje os olhos baços contemplam a cristaleira vazia, e é só.

Não nos dirige palavra nem olhar: nos ignora.

Partiu com seus bibelôs enfeitados para além do reconhecimento.


(foto: "Old Hands", por Alex Algo)

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