8 de set. de 2012

STAR TRECK - 46 ANOS MUITO ALÉM DO ENTRETENIMENTO



Em 1964, inspirado pelas Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift; Gene Roddenberry concebeu uma série de ficção científica que veio a se tornar um dos maiores sucessos da história da televisão mundial.
 
O segredo do sucesso de Star Trek não vem tanto do carisma de seus personagens, do suspense, da aventura, ou do burlesco de alguns episódios psicodélicos dos anos 60; como do fato da série ter sido concebida e desenvolvida não só como uma aventura de suspense ambientada no espaço, mas também como uma série de contos de moralidade que,  a cada episódio, confrontaria seus personagens com dilemas como guerra ou paz, lealdade, autoritarismo, imperialismo, guerra de classes, racismo, sexismo, religião, direitos humanos e o papel da tecnologia.
 
Para mim, o mais importante feito da série é ter em plena guerra fria, muito antes da dita "emancipação feminina" e nos estertores do apartheid velado em que vivia a sociedade norteamericana; introduzido os conceitos de DIVERSIDADE e TOLERÂNCIA, ao apresentar entre seus personagens principais um russo, uma mulher negra, um japonês e um alienígena de inteligência superior.

3 de set. de 2012

OS SUTRAS DE TETSUGEN


Em meados do século VXII, o zen começava a se espalhar pelo Japão.
 
Um de seus primeiros devotos, o mestre Tetsugen Dõkõ da escola Õbaku, decidiu que era necessário prover os mosteiros com uma edição dos sutras em japonês.
 
Para isso estimou serem precisos 7 mil exemplares.
 
Para dar uma idéia da enormidade da tarefa, a técnica de impressão disponível na época era a xilogravura (para os japoneses, Ukiyo-e), ou a impressão manual a partir de blocos de madeira entalhados também à mão.
 
Tetsugen pôs-se a peregrinar pelo país coletando doações.
 
Dez anos se passaram até que chegasse à quantia necessária para começar os trabalhos.
 
Sucedeu-se, no entanto, uma enchente histórica do rio Uji e, em seu rastro, a fome.
 
Tetsugen gastou todos fundos acumulados para a impressão dos sutras para ajudar as vítimas, recomeçando imediatamente após o desastre a coleta de donativos.
 
Vários anos depois, uma epidemia assolou o país. Outra vez Tetsugen doou o que havia coletado para ajudar as pessoas.
 
E pela terceira vez retomou o trabalho de coletar fundos para a impressão dos sutras.  Passados vinte anos finalmente seu desejo foi realizado.
 
Em 1681, os sutras de Tetsugen - uma obra de cerca de 60 mil peças -, tiveram sua primeira impressão.
 
Ela pode ser vista até hoje no mosteiro de Õbaku, em Kyoto.
 
Os japoneses costumam contar a seus filhos que Tetsugen fez três impressões dos sutras, e que as duas versões invisíveis superam em beleza a versão impressa.
 
BOM DIA, BOA SEGUNDA E UMA SEMANA ILUMINADA A TODOS!!!
 
(Foto: ateliê de Ukiyo-e em Tsukuba, Japão © 2005 David Monniaux)

2 de set. de 2012

MATAJURO - UMA LIÇÃO DE PERSEVERANÇA


Como hoje é domingo, segue uma historinha mais extensa. Se verdadeira ou não, há controvérsia. O protagonista de fato existiu e seu nome é conhecido ainda nos nossos dias.
 
É uma história de fibra e perseverança  - virtudes infelizmente encontradas da inversa proporção de sua necessidade neste mundo imediatista em que vivemos.
 
Segue a história:
 
Desde o nascimento, Matajuro carregava a responsabilidade de um dia suceder ao pai, chefe do clã dos Yagyu, uma renomada linhagem de mestres da katana. Desde cedo, no entanto, sua preguiça obscureceu o talento ameaçando impedir que viesse a atingir seu potencial. Na tentativa de sacudí-lo dessa letargia, o pai o baniu do dojo.
 
A punição o atingiu em cheio, e Matajuro deixou a casa paterna determinado a dominar a arte da defesa mesmo que só para mostrar ao pai o quanto estava errado. E saiu pelo Japão a procurar um mestre à sua altura.
 
Ao percorrer a província de Kii, uma região montanhosa conhecida por suas 48 cachoeiras, ouviu falar de um renomado mestre de habilidades incomparáveis que viveria próximo ao santuário de Kumano Nachi, um dos mais antigos do Japão.
 
Chegando ao santuário, os monges indicaram que seguisse uma trilha pela densa floresta, ao final da qual, segundo os monges vivia um heremita senil chamado Banzo que se dizia ter sido em seus dias um grande mestre na arte da katana.
 
Seguindo a indicação dos monges, Matajuro embrenhou-se pela mata avançando com dificuldade até chegar a uma pequena choupana. Mesmo não vendo ninguém, anunciou em voz alta:
 
- Eu vim aprender a arte da katana. Quanto tempo demorará?
 
- Dez anos. - anunciou uma voz rouca por trás da porta fechada.
 
- É muito tempo. - Matajuro sacudiu a cabeça - E se eu trabalhar em dobro e praticar duas vezes mais?
 
- Vinte anos - foi a resposta.
 
Ao ver para onde a conversa levava, Matajuro sabiamente deixou de argumentar pedindo simplesmente ser tomado como aprendiz, tendo imediato consentimento de Banzo.
 
Mas foi um aprendizado peculiar: Matajuro foi proibido de sequer tocar na katana ou mesmo falar em defesa. Ao invés disso, foi posto a trabalhar cortando madeira, cozinhando, lavando roupas e limpando a cabana numa jornada que se estendia do amanhecer até altas horas da noite. Banzo raramente lhe dirigia a palavra e em momento algum referiu-se à kenjutsu.
 
Um ano havia se passado, e Matajuro crescia em frustração suspeitando que havia sido enganado para tornar-se criado de um velho demente. Certa manhã, ele cortava a lenha com raiva chegou a decidir ir buscar o aprendizado com outro mestre. Com certeza haveria dezenas de mestres que se sentiriam muito honrados em tomar um membro do clã dos Yagyu como aprendiz, concluiu com amargura ao ver a pilha de madeira ainda por ser cortada, e enterrou a lâmina do machado com fúria, como se naquele gesto encontrasse cura para seus problemas. Não reparou que não estava sozinho até sentir-se jogado de encontro à pilha de madeira por um golpe violento. Confuso, olhou ao redor, para ver o velho mestre brandindo uma vara de bambu verde sobre sua cabeça. Sem uma palavra, Banzo deu-lhe as costas e desapareceu na mata silenciosamente como surgira, deixando que Matajuro pensasse que estava sendo punido por faltar com suas tarefas.
 
Seu sangue samurai envergonhou-se de resvalar em suas responsabilidades, mesmo planejando deixar o velho louco. Levantando, Matajuro acabou de rachar a lenha, decidindo que sua próxima tarefa, a última daquele dia, haveria de ser executada com tanto esmero que o mestre não acharia a menor falta em seu trabalho. Assim, algumas horas depois, quando esfregava as roupas próximo à cachoeira, Banzo atacou novamente, jogando Matajuro dentro d'água:
 
- Você deseja aprender a kenjutsu, mas não consegue desviar do golpe de uma vara de bambu! - zombou o velho.
 
O orgulho aristocrático de Yagyu Matajuro foi mais uma vez inflamado. E do jeito como deixara a casa paterna prometendo só voltar quando pudesse provar ao pai o grande espadachim que se tornada, Matajuro decidiu ficar no santuário de Nachi para provar ao velho que estava errado.
 
Assim decidido, começou a se concentrar: independente do que estivesse fazendo no momento, preparava-se para um ataque surpresa. Banzo atacou cinco vezes ao dia, então dez, então vinte; sempre quando seu aprendiz estava ocupado com outra coisa. E era tão silencioso que o único alerta seria o farfalhar do manto ou o sibilar da vara de bambu cortando o ar. Semeando o jardim, lavando nas cataratas, consertando o telhado da cabana; Matajuro estaria sempre ocupado com uma tarefa ou outra, preparado para saltar ao menor ruído assim evitando mais e mais golpes dirigidos a ele.
 
Quando Banzo constatou que já não conseguia sequer tocar o pupilo com a vara por vários meses, mudou de estratégia: em adição aos assaltos diurnos, começou a atacar Matajuro enquanto este dormia.
 
O jovem precisou redobrar seus esforços, aprendendo a ter um sono leve, com o subconsciente sempre em alerta. Amargamente constatou que quanto mais bem sucedido era em evitar a vara de bambu, mais frequentemente esta o buscava: setenta, oitenta, cem vezes ao dia e à noite, o mestre irromperia como um fantasma para atacar. Mas era cada vez mais difícil para Banzo flagrá-lo num momento de desatenção, pois os instintos do jovem já se achavam aguçados num nivel quase sobrenatural.
 
Certa noite, quatro anos depois de ter chegado ao santuário, Matajuro estava preparando um chirashizushi, um cozido de arroz e vegetais. Pelava cuidadosamente um ramo de bardanas quando Banzo surgiu às suas costas. Sem deixar cair os vegetais ou erguer-se da posição de cócoras em que se achava junto ao fogo, Matajuro arrebatou a tampa de um vaso defendendo-se com a mão livre para continuar cozinhando tranquilamente.
 
Naquela noite, Banzo o presenteou com um certificado de proficiência na arte da defesa e uma antiga katana. Matajuro já não precisava de nenhum dos dois. Sem ter tido uma lição formal sequer, e jamais tendo empunhado uma arma, havia atingido o mais alto nível do bugei: era um mestre do zanshin.

1 de set. de 2012

DEBATE EM SILÊNCIO (PARÁBOLA ZEN)


Era uma vez dois irmãos monges que viviam em um templo no norte do Japão. O mais velho era um estudioso ilustrado, mas seu irmão mais novo era um sujeito estúpido e ignorante e, como senão bastasse, caolho.
 
Certo dia, um monge errante bateu à porta do mosteiro pedindo morada. Como reza a tradição, desafiou algum dos monges que lá moravam para um debate sobre os sublimes ensinamentos - é que, pela tradição, o monge errante ganha o lugar de outro monge em um templo se o vencer num debate sobre budismo.
 
O irmão mais velho, cansado de tanto estudar, pediu ao mais novo que assumisse seu lugar com o seguinte conselho:
 
- Solicite o debate em silêncio.
 
Assim fazendo, o irmão mais novo conduziu o monge errante para a privacidade do altar onde ficaram os dois calados a se observar, enquanto o irmão mais velho retomava seus afazeres vespertinos.
 
Pouco tempo depois o monge errante o procurava:
 
- Seu irmão é um indivíduo maravilhoso. Ele me venceu!
 
- Como?
 
- Bem, - explica o monge errante - Primeiro eu ergui um dedo, representando Buda, o Iluminado. Então ele ergueu dois dedos, significando Buda e seus ensinamentos. Então eu ergui três dedos, representando Buda, seus ensinamentos e seus seguidores vivendo harmoniosamente. Foi quando ele armou o punho e me desferiu um soco na cara, indicando que os três decorrem do entendimento. Assim ele venceu, portanto não tenho direito de permanecer aqui.
 
E com essas palavras o monge errante partiu.
 
Instantes depois, o irmão mais jovem irrompe esbaforido:
 
- Onde está aquele miserável? - pergunta visivelmente transtornado.
 
- Por que o procura, se já venceu o debate?
 
- Venci nada! Vou dar uma surra nele!
 
- Não estou entendendo. O que aconteceu?
 
- Bem, no instante que sentamos, ele mostrou um dedo, me insultando ao insinuar que eu tenho um olho só. Como se tratava de um estranho fui educado, e mostrei dois dedos para cumprimentá-lo por ainda ter os dois olhos. Aí, o mal-educado mostrou três dedos, sugerindo que entre nós dois tínhamos três olhos. Fiquei possesso e desferi um soco na cara daquele idiota, e ele fugiu!

31 de ago. de 2012

HISTÓRIAS DA GROTA DO FUNDÃO

A historinha que se segue é uma das várias que comecei a escrever ainda em 2006 para um livrinho infantil. Como estavam guardadas no meu HD, decidi compartilhar.



O DICIONÁRIO DO FUNDÃO



- Pancrácio! Pancrácio!

Confuso, o tapir olhou para cima. Fingida, Rita Caturra abriu o bico de lado a lado num sorriso maroto.

- Oh, que palavra bonita... obrigado! Um bom dia para você também, Rita!

Faceiro, o tapir seguiu em frente. Instantes depois, um farfalhar de folhas denunciava os movimentos da preguiça umas três ou quatro árvores adiante do galho de onde Rita se achava.

- Bom dia, dona Ciça! - cumprimentou Rita Caturra – A senhora está muito mondronga hoje!

- Mondronga, eu? Ora, bobagem... mal penteei os pelos! - dizendo isso, Ciça começou a passar as unhas pelos pelos da cabeça. O processo inteiro levaria uns dez ou quinze minutos, mais ou menos.

Mas Rita nem prestou atenção no gesto garboso da preguiça, pois o prefeito Pavão acabava de despontar na trilha que levava até o riacho.

- Bom dia, senhor prefeito! - cumprimentou Rita toda adulante – Alguém já disse que o senhor é um perfeito mandrião?

Ao ouvir isso, o prefeito não se conteve, e abrindo a cauda em leque seguiu seu caminho todo orgulhoso. Ao ver tudo isso lá de cima, o urubu não se conteve, e pousando num galho próximo provocou:

- Que história é essa, Rita? Vindo de você, boa coisa é que não é...

- Nossa! - exclamou a caturrita arregalando os olhinhos de espanto – Já reparou em como o senhor está mofento hoje, seu urubu? Impressionante!

Desconfiado, o urubu não respondeu. E nem teria tempo, pois Chico, o mico apareceu do nada se intrometendo:

- Rita Caturra: da última vez que você abriu o bico quase botou fogo no Grotão...

- Ai, Chico, vindo de um papalvo como você é um grande elogio!

- Cuidado com essa caturrita, Chico... - avisou a garça pousando bem pertinho dos dois.

- Dona garça... sempre tão simplória! - retrucou Rita com exagerada educação – Como tem passado?

- Eu? Bem, obrigada... - respondeu a garça desarmada pela gentileza da caturrita.

- Oh, e lá vem o Queixada, o grande nauseabundo do Grotão!!

- Tá de gozação com o meu traseiro? - protestou o suíno franzindo o cenho – Isso não tem graça nenhuma.

- Mas soa engraçado... nauseabundo! - riu-se o mico.

- É? E que tal papalvo? - retrucou o queixada – Não pense que eu não estava ouvindo!

- Calma, pessoal! - pediu o urubu agitando as asas.

- Isso, vamos todos ouvir o mofento! - gritou a preguiça que ainda se penteava.

- Qual é o problema? - perguntou o tapir saindo do mato de repente.

- Só porque é um pancrácio, acha que pode tomar satisfações? - cutucou a preguiça com malícia.

A isso o queixada, o mico e o urubu gritaram em coro:

- Mondronga! Mondronga!

Ouvindo a gritaria, o pavão interveio do alto de sua autoridade como prefeito:

- Mas que comoção é essa? Agora chega... todos vocês!

Sem se conter, Chico sussurrou baixinho:

- Mandrião...

E logo toda a bicharada repetia em coro:

- Mandrião! Mandrião! Mandrião!

Sorrindo de orelha a orelha, Rita gritou do seu galho:

- Mas que bela súcia de poltrões!

E foi tamanho o alarido que se seguiu, que acabou acordando a magistrada, doutora Coruja:

- O que está acontecendo aqui?!?

- O queixada me chamou de papalvo! - protestou o mico.

- E o Chico me chamou de mofento! - reclamou o urubu.

- É mas, ele me chamou de pancrácio! - gritou o tapir.

- E todos me chamaram de mondronga, como se fosse uma coisa muito feia! - reclamou a preguiça numa vozinha estridente.

- É, mas a senhora foi a primeira a me chamar de mandrão como se fosse grande ofensa! - revoltou-se o prefeito pavão.

- Papalvo?! Mofento?! Pancrácio?! Mondronga?! Mandrião?! - repetiu a magistrada com assombro.

Ouvindo aquelas palavras esquisitas todas uma atrás da outra, a bicharada explodiu em gargalhadas.

- De onde é que vocês tiraram essa patacoada? - indignou-se a coruja.

Ao ouvirem mais uma palavra esquisita, os bichos riram ainda mais alto.

- Mas que falta de compostura! - censurou doutora Coruja – Querem fazer o favor de se comportar como os adultos que deviam ser?

Envergonhados, os bichos olharam calados para o chão.

- Agora sim... - suspirou a magistrada – Quem pode me dizer de onde vieram essas palavras?

- Foi a Rita Caturra quem começou. - respondeu em coro a bicharada apontando o galho de onde Rita, esperta como era, já havia azulado há um bom tempo.

- Aquela doidivanas... - resmungou a magistrada.

- Doidi o quê? - perguntou a bicharada lutando bravamente para conter o riso que ameaçava explodir outra vez a qualquer hora.

- Leviana, imprudente, estouvada, girolas, doidela, adoidada...

- Empanzongada! - gritou Chico o Mico querendo parecer muito sabido.

- Que que é isso? - perguntou o tapir.

- Sei lá... acabei de inventar! - respondeu o mico.

- Até que é engraçado... - divertiu-se o urubu – Empadarmanda!

- Encafrimestada! - gritou a preguiça.

E a bicharada explodiu numa gritaria de palavras inventadas rindo às gargalhadas a cada nova invenção. Ao ver que tudo virara brincadeira, doutora coruja deu de asas e voou para um canto mais sossegado planejando retomar a sesta:

- Essa bicharada não tem jeito... bando de simplórios mesmo.

Logo a moda se espalhava por todos os cantos do Grotão:

- Bom dia, dona Saíra! - cumprimentava daqui uma gralha picassa – Não está uma manhã marafrozíssima?

- Extradofrágila, minha cara! - respondia a saíra estufando o peito.

- Oh, os brotos hoje estão simplesmente apelicrósios! Tão tenros, tão verduleijinhos depois daquele sereno! - elogiava a ema.

- Donas molambentas, como têm passado? - essa era Rita cumprimentando as outras aves.

- Paraticalhosamente! - respondia a gralha.

- Extrambifúrgica! - exclamava a saíra.

- Ricarambbranquelha! - saudava a ema.

E a bicharada ria e se divertia. Rita só Rita é que não achava engraçado afinal ela é que inventara a brincadeira.

- Comadres, quais a novas? - perguntou a arara Juba que estivera fora por uns dias.

- Velhusquelas doradantes pospertadas. - respondeu a gralha.

- Que que é isso, amiga gralha?

- Não está informuscada? É a nova moda no Grotão

- É que tenho andado ocupada ultimamente... - responde a arara.

- Oh, não diga ocupada, minha amiga, está fora de moda... diga... hummmm... ocupletada!

- Ocupletada?! - exclama Juba assombrada – Ocupada não serve mais?

- Servir, serve... - explica a gralha toda didática – Mas não se usa mais. A moda agora é falar difícil! É... chique!

- Precisa ver o prefeito pavão... - intervém a ema – É o campeão das parlofrases dificosas! Dá gosmostrose de ouvir!

Sacudindo a cabeça, a arara Juba se afasta:

- Três dias fora e o Grotão vira de pernas pro ar...

Instantes depois, um grande alarido chama sua atenção. Em silêncio a arara pousa num galho para observar.

- Bicholvanas do Grotão! - exclama o prefeito todo pomposo – Nascemundo endrovalhado, arquimeras porumvir! Sedetanto incrafismado, paraládeo ornaplicur!

E a bicharada explode em aplausos entusiasmados.

- Eu não parlafalei? - pergunta a saíra pousando próximo a Juba – Dá vontade de choromosear!

- Dá, é? - pergunta a arara cética.

- Oh, e isso não é nada! - exclama a saíra entusiasmada – Precisa ver os desaforos!

- Precisa, é? - suspira a arara.

- Venha comigo! - convida a saíra – O tapir e o tatu-canastra vivem discutindo... é estrambolizante!

As duas voam por alguns instantes em silêncio, logo se aproximando do som de vozes alteradas. Numa clareira próxima ao lago, a bicharada assiste em êxtase enquanto os dois se digladiavam:

- Vaclimégio, coranastra! - acusa o tapir de focinho erguido.

Depois de hesitar um instante, é a vez do tatu-canastra retrucar:

- Crombofôngio!

- Zoramanco!

- Empratilhado!

- Grambechudo!

A cada novo desaforo, a bichara explode em palmas e gargalhadas. Uns tão entusiasmados que não resistem a dar suas próprias contribuições à discussão:

- Catramâncias! - sugere a ariranha esbaforida.

- Quasquidério! - grita a ema.

- Estrambogídio! - grita Chico.

- Querelemâncio! Drostombúzio! - berra o sagui.

E seguem as sugestões: caratingau, morobolento, maracamboso, e por aí a fora...

Inconformada, Juba vai procurar doutora coruja:

- Vossa excelência está ciente do que se passa por aqui?

- Infelizmente, minha filha... - suspira a coruja – Mas o que fazer? Pelo menos a bicharada está se divertindo.

- Por enquanto... - comenta Juba – Mas bem que pode acabar mal.

- Você tem razão, Juba. - pondera a magistrada alçando o vôo.

E sob o olhar atônito da arara, a coruja começa a voar em círculos, dando rasantes sobre as cabeças dos animais.

- O que diabos está acontecendo aqui??!!! - brada a coruja ameaçadora.

- Estrambolhices quadrambólicas, diagripanto imbestragão! - retruca o tatu-canastra se enrolando no casco.

- Chega de parlapatice! - ordena a coruja pousando no casco do tatu – Isso aqui virou uma Babel... não vou mais tolerar uma sandice! Uma bicharada adulta como vocês... que exemplo estão dando às crias? Não se dão conta do ridículo?

- Ridículo? Ora... - empertiga-se o prefeito pavão ofendido, mas a coruja o interrompe peremptória:

- Não se pode andar por aí inventando palavras a torto e a direito... que adianta falar uma coisa se o outro não pode entender?

- Mas a senhora vive fazendo isso com a gente... - protesta o tatu enrolado no casco.

- É diferente. - explica a magistrada – As palavras que eu uso, por estranhas que pareçam, existem todas no dicionário... que casualmente desapareceu da minha estante dias atrás.

- Dicionário?! - espanta-se a bicharada – Que que é isso?

- É um livro onde se escrevem todas as palavras e o que cada uma significa. Ou algum de vocês acha que a Rita Caturra é tão esperta que saiu de uma hora pra outra a inventar aquelas palavras todas?

- É verdade, Rita?! - a bicharada volta-se acusadora para a caturrita que até então se divertira às baldas com aquele rebuliço todo.

- É... - confessa a caturrita sem jeito.

- Rita, você dá uma nova dimensão à fama de desmioladas de todas as caturritas. - censura a coruja.

- Então quer dizer que aqueles elogios não eram inventados? - pergunta a ema ainda assombrada – Eram palavras de verdade?

Rita faz menção de sumir dali voando, mas Juba, mais esperta, a prende pelo rabo com as garras.

- Vai, confessa logo, menina. - ordena a arara implacável.

- Aquelas palavras... eu achei no dicionário da juíza Coruja... - começa Rita pigarreando.

- E não são elogios... - acusa a coruja – Não é Rita?

- Não. Não são... - confessa a caturrita num fio de voz.

- O que significam, então? - pergunta a bicharada.

- P-p-pa-pa-papalvo q-q-quer dizer pateta... - gagueja a caturrita.

- Mofento, significa bolorento, funesto... - a coruja ensina implacável – Pancrácio é tolo! Mondronga, significa monstrenga! E mandrião quer dizer preguiçoso, vadio!

- Vadio... eu?! - grita o prefeito pavão indignado.

- E eu?! Pateta???!!! - revolta-se o tapir.

- Bolorento funesto... eu?! - exclama furioso o urubu - Essa menina merece uma lição!!

E com dentes, garras, espinhos e unhas afiadas a bicharada avança ameaçadoramente para a pobre caturrita encolhida por trás da plumagem da ararajuba.

- Era só uma brincadeira... não tinha intenção de ofender ninguém... - defende-se numa vozinha fina.

- Mas me chamou de monstrenga! - ameaça a preguiça descendo pelo tronco da árvore – Se isso não é ofensa, não sei mais o que é!

- D-d-desculpem! - implora Rita tremendo.

- Não tem desculpa, não! - decreta o prefeito – Você merece um bom castigo!

- E eu tenho a punição perfeita para ela. - adianta-se a coruja antecipando-se à fúria da bicharada.

- E qual seria? - perguntam os bichos em coro.

- Bem, já que a Rita Caturra gosta tanto de palavras novas e esquisitas... ela será a copista oficial do Dicionário do Fundão!

- Ah, isso lá é castigo, excelência? - reclama o pavão.

- O que que é copista, hein? - pergunta o tapir com ar abestalhado.

- Copista é alguém que copia coisas... - ensina a coruja – No caso da Rita, ela vai tar que repetir para todo mundo as todas as palavras que vocês inventarem... Mas antes vai ter que olhar no dicionário pra saber se já não existem.

- Quer dizer que a gente pode continuar inventando palavras do jeito que vinha fazendo? - pergunta a ema esperançosa.

- Pode, sim. Mas só vai poder usar depois que a Rita tiver conferido no dicionário, anotado e espalhado a palavra nova para todos os bichos do fundão.

- É, mas como é que fica a senhora? - pergunta o mico desconfiado.

- Como assim? - pergunta a coruja.

- Bem, com o devido respeito, excelência... mas a senhora vive usando palavra que bicho nenhum nunca ouviu antes...

- Isso mesmo! - exclama a bicharada em coro.

- Muito bem! - aquiesce a coruja com um suspiro - Pois vamos então começar pelas palavras que todos conhecemos. Eu serei a primeira!

- Nossa, que trabalheira que vai ser! - resmunga a preguiça – Ainda bem que não sou eu...

Satisfeitos com a solução, os bichos recolheram-se às suas tocas e afazeres.

- Venha, Rita. - ordena a coruja – temos muito que fazer.

- Mas... já?

- Sim, neste exato momento: só eu contei mais de vinte palavras que você precisa anotar. Isso sem contar todas as palavras que os bichos já conheciam antes de você inventar moda.

- Todas?! - exclama a caturrita - Não dá pra já usar o dicionário que a senhora tem?

- Não. Aquele é o dicionário das pessoas. Vamos fazer um dicionário todinho nosso.

E com essas palavras a coruja se foi, seguida da caturrita murchinha que nem araçá caída do pé.

Semanas depois...

- Inventei! - irrompe o jaburu exultante - Escreve aí: estrambólico!

- Calma, calma, deixe eu ver... - suspira Rita folheando o dicionário – Esta já tem.

- Tem, é? - espanta-se o jaburu – E o que quer dizer aí?

- Estrambólico: que não é comum; esquisito; extravagante; original, excêntrico... - Rita lê bocejando – De mau gosto, ridículo.

- Mas o meu estrambólico quer dizer extraordinário! - protesta o jaburu - Quem foi que inventou esse aí? - pergunta o passarão espichando o olho para o dicionário.

- Vai, Jaburu: regras são regras. Você sabe muito bem que eu não posso contar, pra não fazer diferença entre ninguém. E agora, se me der licença... - diz a caturrita muito séria fechando o dicionário.

O jaburu se afasta uns passos cabisbaixo, então volta todo entusiasmado:

- E estupefástico? Pode?

- Ai, meus sais... - suspira a caturrita revirando os olhos e voltando a abrir o dicionário.

Do alto de uma árvore próxima a coruja e Mau-Mau Picapau observam.

- Sabe que tem um lado bom nessa história toda? - comenta a coruja com um sorriso – Desde que começamos, o vocabulário da bicharada se ampliou significativamente...

- Pois, se a senhora me permite... - insinua o pica-pau com olhos brilhantes – Gostaria de ser o editor e distribuidor exclusivo do Dicionário do Grotão! Já posso até ver a propaganda: “edições especiais para aves, mamíferos, répteis, batráquios e insetos!”

- Mau-Mau, você é mesmo um picastrólio! - diverte-se a coruja.

DAS APARÊNCIAS (PARÁBOLA ZEN)



Certo dia o abade zen vestido como um mendigo bateu à porta do homem rico.
 
- Como ousa bater à minha porta em momento tão inoportuno? - bradou o homem rico dispensando-o sem oferecer sequer um prato de arroz.
 
Horas depois, devidamente paramentado com seu traje formal, o abade voltou a bater à porta do homem rico.
 
- Ora, seja bem-vindo, senhor abade! Sua visita muito honra a nossa casa! - saudou o homem rico ordenando imediatamente aos criados que servissem uma suntuosa refeição.
 
A mesa foi servida com esmero e fartura porém, ao invés de sentar-se e saborear os manjares, o abade despiu os trajes, dobrando-os no assento que lhe seria destinado.
 
- Esta refeição não é para mim, mas para essas roupas.
 
(HOJE TEM LUA AZUL!!!)

29 de ago. de 2012

AINDA OUTRA PARÁBOLA ZEN



Durante as guerras civis do Japão feudal, (perído conhecido como Sengoku que se estendeu do séc. XV ao XVII no qual, por sinal, floresceram os samurai); era comum os exércitos invadirem aldeias e cidades saqueando, matando e cometendo atrocidades.
 
Também era comum portanto, que ao primeiro sinal de aproximação de um exército, os aldeões abandonassem aldeias e cidades às pressas buscando  refúgio nas florestas ou nas montanhas próximas até que o perigo passasse.
 
Assim acontecera em mais uma remota aldeia no interior do Japão abandonada por todos, à excessão do velho mestre zen tranquilamente postado à entrada do templo local.
Intrigado, o general do exército invasor dirigiu-se ao templo para conhecê-lo e decidir o que fazer dele.
 
Ao se aproximar, julgou que o velho não o recebia com a deferência e submissão às quais estava acostumado.
 
Ofendido, esbravejou desembainhando a espada:
 
- Seu tolo! Não se dá conta que está na presença de um homem que poderia cortá-lo em dois num piscar de olhos?
 
- E você não se dá conta de que está diante de um homem que pode ser cortado em dois num piscar de olhos? - devolveu o velho mestre com firme serenidade.

(não consegui identificar o autor da foto)