Há quem olhe e pense no "atraso". Há quem olhe a vá logo taxando de "crueldade com os animais". Há quem olhe e pense no desperdício de horas, dias, meses, anos, balançando numa estreita jangada de bambú para pegar só um punhado de peixes por dia. Há ainda quem olhe e pense na miséria de uma vida privada dos "confortos" da civilização.
Mas há também quem olhe e veja beleza, paz, poesia, respeito e integração à natureza numa forma equilibrada de prover-se e compartilhar o que a natureza graciosamente nos propicia sem dela extrair uma grama a mais do que o necessário.
A pesca com o biguá (ou cormorão) é uma prática antiga. Até os arqueólogos identificarem registros dessa prática no Perú, acreditava-se que a pesca com Biguá teria se originado na China ou no Japão entre os séculos 5 e 6 da nossa era. Talvez a prática tenha surgido espontaneamente na América do Sul.
Ou pode ser que tenha sido introduzida em nosso continente pelos asiáticos que migraram para cá há pelo menos 14 mil anos; o que faria da pesca com Biguá uma atividade tão antiga quanto o cultivo manual.
Na prática, funciona assim: enquanto o pássaro ainda está sendo treinado, o pescador prende um anel de fios de bambu no pescoço de cada biguá, parte com sua jangada ao anoitecer e se posiciona no meio do rio com uma lanterna para atrair os peixes.
Ao ver-se cercado pelo cardume, o pescador balança a jangada e os biguás mergulham emergindo em seguida com os peixes maiores em seus bicos, porque o anel impede que os peixes grandes sejam engulidos.
O pescador então manobra a jangada aproximando-se dos biguás, puxando-os em seguida pelo anel para o chão da jangada. Depois disso é só "colher" os peixes dos bicos dos pássaros.
Ao final da pesca, o pescador remove o anel do pescoço dos biguás e presenteia cada um com um peixe grande.
Com o tempo, o pássaro aprende a esperar essa recompensa e não precisa mais do anel.
É um sistema absolutamente sustentável, pois os biguás não podem ficar mergulhando indefinidamente, e os cestos dos pescadores não acomodam mais que alguns peixes - o necessário para o consumo próprio e venda ou escambo do pouco excedente.
Assim a fauna do rio Li, na China vinha se mantendo e renovando ao longo dos séculos e se não havia fartura, pelo menos não havia falta de alimentos.
Mas a exploração comercial praticamente acabou com esse cenário bucólico com seus grandes barcos e redes de arrastão. Os poucos pescadores que persistem na prática o fazem porque ganham mais cobrando 2 dólares para serem fotografados pelos turistas, do que os 50 centavos que conseguem na venda do peixe.
Em algum blog que me recuso a citar, um miliciano ambientalista em sua míope visão primeiromundista denuncia a prática como "crueldade com os animais"; como se fossem menos cruéis as redes dos imensos pesqueiros que varrem indistintamente flora e fauna dos leitos de rios, lagos e oceanos pelo mundo a fora, deixando atrás de si o rastro putrefato dos "descartes" incluindo alevinos e espécimes adultos menos comercializáveis.
Crueldade é extrair sem retribuir.
Crueldade é apropriar-se de um recurso natural, clamar direitos exclusivos e explorá-lo até a exaustão.
Crueldade é abastecer-se regularmente com mais do que de fato se consome enchendo os lixões deste planeta com restos não consumidos de seres outrora vivos misturados a outros resíduos formando um caldo pútrido que não só não serve nem para reaproveitamento por outras espécies; como se infiltra nas águas e envenena o solo por gerações.
Crueldade é pescar por esporte, não para consumo.
(Foto: "Pescadores com Biguá ao Anoitecer", Rio Li, Província de Guilin, China. Por Dan Ballard)
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