Ainda busco uma explicação para os excessos, e não engulo o discurso oportunisticamente paternalista de que os vândalos são garotos revoltados com a falta de liberdade, até porquê tem muito menino e menina de classe média instigando a baderna e quebrando vidraça por aí.
Quanto mais observo, mais me parece que a frase do Samuel Johnson sumariza o que se vê por aí, particularmente quanto à larga apropriação indébita tanto do nome como do símbolo do Anonymous pelos mais diversos matizes ideológicos.
Um pouco de história faz-se necessário para contextualizar essa bagunça toda:
O Anonymous surgiu a partir de um grupo de amigos virtuais, em sua maioria usuários do forum /b/ no 4Chan, que a certa altura, indignados com a proliferação de material de pornografia infantil partiu para a ação, seguindo e expondo a identidade de pervertidos na internet.
O próximo alvo foi a cientologia, depois que o culto resolveu processar o Youtube pelos direitos autorais de um vídeo com Tom Cruise vazado pelo canal. Revoltada com a censura, a rapaziada deflagrou o "Projeto Chanology" que consistia em ataques de negação de serviço e trotes por telefone às sedes do culto espalhadas pelo mundo a fora. Quando o FBI começou a caçar e intimidar membros do grupo, numa declaração de guerra aberta, o Anonymous postou no Youtube o famoso vídeo "Mensagem para a Cientologia" (http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Message_to_Scientology.ogv), e logo em seguida, o vídeo "Call to Action" foi publicado também no YouTube, chamando usuários do site para manifestações em frente às sedes da cientologia pelo mundo a fora. Sabendo que o culto empreenderia uma violenta campanha de retaliação, acharam prudente aconselhar às pessoas dispostas a comparecer a essas manifestações que usassem máscaras para proteger suas identidades.
Como no 4chan todos os usuários postam como "Anonymous", a escolha do nome foi inevitável.
Isso foi bem antes de virar "legião", tanto que o refrão era:
Nós [Anonymous] somos apenas um grupo de pessoas na internet que precisa — de um tipo de saída para fazermos o que quisermos, que não seríamos capazes de fazer numa sociedade normal. ... Essa é mais ou menos a ideia. Faça como quiser. ... Há uma frase comum: 'faremos pelo lulz*. (*plural de "lol", que significa "laugh out loud", ou rindo às gargalhadas).
A adoção da máscara de Guy Fawkes que atualmente caracteriza o movimento veio em decorrência de um processo de crescente identificação do grupo com o personagem dos quadrinhos cult (posteriormente vertidos para a telona), pela agregação de mais e mais adeptos com crenças, pleitos e ideologias próprias expandindo não só seus objetivos mas sua área de atuação.
É só neste segundo estágio que o aforismo nós somos Anonymous. Nós somos Legião. Nós não perdoamos. Nós não esquecemos. Esperem por nós foi cunhado.
Para dar uma ideia da dimensão atual do Anonymous, em 2011 ele esteve envolvido diretamente na Primavera Árabe (Egito e Tunísia), na Malásia, na Síria, no Occupy Wall Street (e todos os eventos do gênero), na Operação DarkNet (que operou no submundo da internet fechando 40 sites de pornografia infantil, revelando de quebra as identidades de mais de 1500 pedófilos ao FBI e Interpol), na Nigéria, nos protestos contra a SOPA (Stop Online Piracy Act), na Polônia, contra o ACTA (Anti-Counterfeiting Trade Agreement); e agora chega ao Brasil no rastro do movimento pelos 20 centavos.
A única bandeira que se pode atribuir ao Anonymous é o princípio anarquista do "ninguém delega a palavra a ninguém". Essa é uma via de mão dupla: assim como o Anonymous não representa nenhum grupo específico, nenhum grupo, crença ou partido pode se alçar ao direito de se proclamar legítimo representante do Anonymous.
Mas há um porém, particularmente no que tange a essa balbúrdia que tomou de assalto a sociedade brasileira: não é porque não se alinha a este ou aquele partido que o Anonymous carece de conteúdo político.
Mas o que busca o Anonymous, afinal?
O Anonymous nada mais busca do que a aplicação prática do que está escrito na Declaração de Independência dos Estados Unidos da América:
(...) todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados; que, sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva de tais fins, cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo(...)
Simples assim. Mas as implicações são extensas.
1 - a declaração refere-se a "homens dotados pelo Criador" - isso exclui empresas e corporações, pois estes são entes artificiais criados com o objetivo precípuo do lucro mesmo que em detrimento do bem comum; atribuir-se a essas entidades o poder de definir políticas públicas (i.e.: influenciar a legislação criando penas de privação de liberdade em qualquer nível) é uma contratitio in terminis. Ou, curto e grosso: o que pertence ao âmbito comércio não tem legitimidade para legislar em causa civil.
2 - Vida, Liberdade e Busca da Felicidade são DIREITOS INALIENÁVEIS (não podem ser transferidos, delegados, removidos, divididos, alterados, manipulados e por aí a fora); ou seja, qualquer governo, empresa ou instituição que atente contra esses direitos inerentes à condição de ser humano é, por extensão, inimigo da humanidade.
3 - governos são instituídos pelos homens e para os homens; não para empresas ou corporações.
4 - qualquer governo que se torne destrutivo dos únicos fins a que deve se propor, que são a promoção da Vida, da Liberdade e da Busca da Felicidade dos homens a quem representa deve ser alterado, abolido ou destituído.
Curto e grosso, o Anonymous é a resposta da nova geração à massificação imposta pelo poderio econômico manipulador da política e da opinião pública que reduz indivíduos à condição de unidades produtoras-consumidoras de bens e ideias alienantes dos valores básicos inerentes à condição humana que são a vida, a liberdade e a busca da felicidade.
Qualquer "anônimo" que levantar a voz em nome de interesses outros que a Vida, a Liberdade e a Busca da Felicidade, não é um Anonymous.
Se pracitar atos extremos de violência não é um Anonymous, pois está atentando contra a Vida.
Se levantar a voz contra qualquer bandeira, não é um Anonymous, pois é contrário à Liberdade.
Se seu discurso é o do ódio, da discriminação, seu discurso é contrário à Busca da Felicidade.
Ele é, na melhor das hipóteses, só mais um anônimo confuso sobre de onde veio e para onde vai.
Por isso está hoje nas ruas por mais baderna e menos bandeiras.
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