(foto: Margareth Humphrey)
Num tempo em que berços vazios contribuem lamentavelmente na geração de espaços vazios, é necessário buscar fontes externas de abastecimento. Se não provermos de nosso próprio estoque, deixamo-nos ainda mais expostos à ameaça da abundância dos milhões das raças asiáticas nossas vizinhas.
(Arcebispo de Perth, ao receber uma leva de "órfãos" ingleses na Austrália em agosto de 1938)
Está proposto que o Reino Unido procure na Grã-Bretanha e na Europa, em cada um dos três primeiros anos do pós-guerra, pelo menos 17.000 crianças por ano (ou seja, 50 mil em três anos) disponíveis e adequadas para migrarem para a Austrália.
(Declaração do Primeiro Ministro australiano, dezembro de 1944)
Esta remessa é a pior que já recebi. Sob qualquer aspecto considerado, não há nada que os recomende... Já haviamos destacado na passado que é vatnajoso para a Austrália receber levas de imigrantes de bom e saudável sangue inglês. Se não são nem bons nem saudáveis devemos mudar nossas declarações e perder um dos nossos mais lucrativos itens de propaganda.
(Relatório da Sociedade Fairbridge sobre crianças migrantes chegando à Austrália em 1950)
("ófãos chegam para começar uma vida nova")
Dizem que quando a vida imita a arte, sobrevém a farsa. A história de centenas de milhares de crianças exiladas pelo Reino Unido ao longo de três séculos para popular suas metástases em quatro continentes não podia ser uma maior confirmação dessa regra.
Em 1838 uma novela social escrita por Charles Dickens calou fundo aos corações da burguesia emergente ao retratar com crueza a miséria e desventuras do pequeno órfão Oliver Twist. O impacto dessa obra nas mentes e corações de toda uma sociedade foi o ponta-pé inicial numa séria de reformas que culminaram na atual Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989.
Mas bem antes disso, antes mesmo da novela de Dickens; em 1835, outro escritor menos afamado chamado Edward Augustus, publicou a novela intitulada The English Boy at the Cape: An Anglo-African Story, que chamou a atenção do mundo dito civilizado para a situação de miséria de ilhares de órfãos expatriados pela coroa britânica para trabalhos forçados nas colônias. Logo as redações dos jornais ingleses foram inundadas por correspondências vindas de todas as partes dando testemunho das privações e abusos sofridos por essas crianças.
O escândalo revelou as atividades de uma sociedade "filantrópica" denominada Children's Friend Society, que tinha por objetivo "suprimir a vadiagem juvenil através da reforma e emigração de crianças".
No rastro do escândalo, o governo suspendeu as expatriações para a África do Sul ordenando uma investigação e ainda reduzindo as levas de crianças para a Austrália e o Canadá.
É interessante notar que em momento algum a opinião pública voltou seus olhos para a situação de centenas de milhares de crianças trabalhando como escravas na indústria emergente na própria Inglaterra, mas isso é assunto para outro post.
Annie MacPherson, uma filantropa Quaker viu isso, no entanto; e numa tentativa de dirimir a miséria dessas crianças, fundou a Home of Industry, uma espécie de orfanato-indústria, onde as crianças trabalhavam, mas também eram alimentadas e educadas. Com o tempo, no entanto, MacPherson acabou se convencendo que a única solução para essas crianças era o envio para as "terras da oportunidade" onde, ela acreditava, poderiam encontrar alguma possibilidade de ascensão social. Annie então abriu no Canadá, mais precisamente nas cidades de Belleville, Galt, Knowlton e Ontario, diversos "lares de distribuição".
Foi o começo de um massivo programa de expatriação que se estendeu até 1874, quando o governo inglês recebeu o relato de Andrew Doyle, enviado ao Canadá para averiguar a situação das crianças. Entre outras coisas, Doyle reparou que:
(...) milhares de crianças britânicas, já em circunstâncias dolorosas, foram lançadas à deriva, sendo sobrecarregadas ou maltratadas pelos colonos do Canadá, que embora geralmente honestos mostraram-se rígidos feitores.
Com mais esse escândalo, medidas foram tomadas para amenizar a situação das crianças e a exportação (com o perdão da palavra) para o Canadá diminuiu dramaticamente.
Em 1909, na África do Sul, foi fundada a Society for the Furtherance of Child Emigration to the Colonies (Sociedade para a Promoção da Emigração de Crianças para as Colônias), posteriormente denominada Child Emigration Society (Sociedade da Emigração Infantil), e finalmente estabelecida como Fairbridge Foundation (note-se como o nome vai sendo remodelado para atenuar o impacto), dedicada a educar crianças órfãs e negligenciadas e treiná-las em fazendas-escolas dispersas pelo Império Britânico. Em 1912, com o apoio material e financeiro do governo, a Fundação Fairbridge se estabeleceu na Austrália onde passou a operar.
Cabe ressaltar que nem em todas essas crianças eram órfãs. De fato, uma expressiva proporção era de crianças que haviam sido temporariamente colocadas pelos pais aos cuidados do estado dadas as condições de miserabilidade em que se encontravam. Outras foram recolhidas das ruas onde se achavam no que hoje definimos como "situação de vulnerabilidade".
Ao serem compulsoriamente deportadas da Inglaterra, essas crianças eram levadas a acreditar que seus pais haviam morrido, e que uma vida de abundância as esperava. Muitas foram de fato recebidas em lares amorosos, mas a maioria foi explorada como mão-de-obra barata em empreendimentos agrícolas onde sofreu maus trados e teve negados os direitos básicos à saúde e educação; sendo ainda proibidas de se socializar com as crianças "nativas".
E estamos falando de crianças dos 3 aos 14 anos, tendo a maioria entre 7 e 10 anos de idade.
Via de regra essas crianças eram embarcadas sem nenhum documento, sem uma certidão de nascimento que fosse; como verdadeiros párias; e como se não bastasse, à chegada irmãos e irmãs eram separados e enviados a regiões distantes umas das outras rompendo os últimos laços familiares que ainda restavam.
Coube a uma mulher, Margareth Humphreys, levantar o véu da vergonha que encobria essas operações em pleno século 20.
Trabalhando como Assistente Social envolvida no apoio pás-adoção no Nottinghamshire County Council, na Inglaterra, Margareth recebeu em 1986 uma carta de uma mulher australiana contando que aos quatro anos de idade havia sido enviada para uma instituição na Austrália, e agora, depois de adulta, buscava ajuda para localizar seus pais biológicos na Inglaterra.
Em 1987 Margareth trouxe a público a realidade do programa eufemisticamente denominado Home Children (versão 4.0 da "Sociedade para a Promoção da Emigração de Crianças para as Colônias"), revelando um extenso e intricado mecanismo de deportação compulsória de crianças para a Austrália, Canadá, Nova Zelândia e Rodésia, entre outras partes do Reino Unido.
Dividindo-se entre a Austrália e a Inglaterra, Margareth registrou o relato de vida de dezenas de expatriados, e os horrores, traumas e abusos a que foram submetidos.
Tudo isso porque manter uma criança institucionalizada na Inglaterra custava 5 Libras por dia (mais ou menos uns 16 Reais), mas cerca de 10% desse valor nos outros países do Reino Unido.
Para dar uma ideia da dimensão do negócio, o Senado australiano estima que cerca de 500 mil crianças foram trazidas ao país até 1990. E estamos falando só na Austrália, ainda tem o Canadá, o Zimbaue (antiga Rodésia) a África do Sul e a Nova Zelândia.
(deixando a Inglaterra)
God save their queen.
Em tempo: a história de Margareth foi parar na telona em 2010, no filme Oranges and Sunshine, dirigido por Jim Loach e estrelado por Emily Watson.
Em tempo: a história de Margareth foi parar na telona em 2010, no filme Oranges and Sunshine, dirigido por Jim Loach e estrelado por Emily Watson.
Pq esse é o único post qud existe sobre o assunto? Quem foi que escreveu afinal???
ResponderExcluirEu escrevi, Flávia. Se este é o único post em português é porque aparentemente não há muito interesse pelo assunto. ;)
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